A chuva não caía, despencava. Era o tipo de chuva que transformava São Paulo numa cidade de sombras borradas, faróis tremidos e ruas que pareciam não ter começo nem fim. Em menos de 10 segundos dava para sentir a água infiltrando pela gola da roupa, escorrendo pela nuca, descendo pela coluna como se tivesse vida própria.
E foi bem nesse cenário, barulhento, pesado, quase cinematográfico, que Lívia Santos apertou o passo, o coração batendo mais rápido que os ônibus passando rasgando a radial leste. O cheiro de asfalto molhado, misturado com gasolina, queimava o nariz. A calçada fazia aquele som de chilep chilep, com cada passo dos seus tênis baratos, completamente encharcados, e mesmo assim ela repetia por dentro como um mantra desesperado.

Hoje vai. Hoje eu consigo essa vaga. Era a primeira oportunidade em meses. Um emprego fixo, carteira assinada, salário que não evaporaria entre aluguel, condução e remédios da mãe no interior. Era a chance de não depender, mais de faxinas por diária, sem rotina, sem garantia.
Ela sentiu a mochila bater nas costas a cada passo. Parecia mais pesada hoje. Ou talvez fosse só o medo. No cruzamento com a Brigadeiro, o trânsito estava parado. Carros jogavam spray de água para todos os lados. Um motoboy passou costurando, gritando para um motorista distraído.
Um ônibus freou tão forte que o chiado fez Lívia estremecer por dentro. Ela olhou o celular. 10:13. A entrevista era às 10:20 e ela ainda estava a dois quarteirões. “Vai, Lívia! Só mais um pouquinho”, murmurou para si mesma, puxando o zíper da jaqueta fina que insistia em abrir. Mas então algo quebrou o ritmo.
Foi só um detalhe no canto do olho, uma forma estranha no chão, perto do ponto de ônibus. No começo, parecia apenas uma bolsa jogada, um casaco caído, um lixo levado pela enchurrada. Mas quando ela finalmente virou o rosto para olhar direito, o estômago dela gelou. Não era um casaco, era uma senhora, um corpo pequeno, frágil, quase dobrado sobre si mesmo, como se tivesse caído devagar e ninguém tivesse visto.
O casaco bege, agora escuro de tão molhado, grudava na pele fina, o cabelo grisalho, espalhado, misturado com a água suja, correndo pela calçada. Uma das mãos tremia, tentando segurar o nada. A outra parecia procurar a própria bolsa caída a alguns centímetros. Lívia parou no meio da calçada. A cidade continuou. As pessoas continuaram. Ninguém desviou o olhar por mais de 3 segundos.
A respiração dela ficou presa no peito. Seus dedos se fecharam em punho involuntariamente. Não, não é possível. Alguém tem que ajudar. Ela olhou ao redor, homens de terno passando rápido, mulheres protegendo bolsas, jovens correndo para se abrigar. Dois rapazes até olharam, mas seguiram como se a idosa fizesse parte da paisagem cinza da cidade.
Lívia sentiu um nó quente subir à garganta, coragem e medo ao mesmo tempo. A entrevista, a chance, o horário, mas acima de tudo aquela imagem. Uma senhora sozinha num rio de chuva, tremendo, invisível. Os pés de Lívia decidiram antes da cabeça. Ela se abaixou rápido, sentindo o joelho afundar na água gelada, e tocou de leve o ombro da mulher.
Senhora, senhora, a senhora me escuta? A idosa abriu um olho devagar, como quem desperta de um sonho pesado. “Minha filha”, sussurrou, a voz tremida quase sumindo no barulho da chuva. “Acho que acho que a pressão baixou.” Lívia engoliu seco. Aquela palavra, minha filha, sempre mexia com ela.
Desde que saiu do interior, quase ninguém chamava assim. Tudo bem, tudo bem, eu tô aqui. Ela tirou a própria mochila das costas, colocando debaixo da cabeça da idosa para elevá-la. Respira devagar, tá? A senhora tá com dor no peito? Sente tontura forte? A senhora piscou confusa. Só, só não consigo levantar. Lívia olhou em volta outra vez.
Alguém ajuda aqui, por favor. É uma idosa. Ei! gritou para um rapaz parado sob a marquise. Ele fingiu não ouvir. O nó no peito virou raiva, não da indiferença de uma pessoa, mas daquela frieza coletiva que parece que a cidade ensina. A chuva aumentou. O vento bateu de lado, levantando o casaco da senhora, fazendo-a tremer ainda mais. A gente vai levantar devagar, dona ela hesitou.
Como é seu nome? Elsa respondeu a idosa num fio de voz. Dona Elsa, tá bom. A senhora vai colocar o braço aqui, ó. Isso. Devagar. Eu vou ajudar. Lívia levantou com esforço, puxando a idosa junto, mas as pernas da mulher cederam de novo, fazendo as duas quase tombarem na água. Ai, meu Deus! Lívia prendeu a respiração, segurando firme. Calma, eu não vou te deixar aqui, nem morta.
Ela tirou o próprio casaco, fino, barato, molhado, e envolveu os ombros de dona Elsa como se estivesse salvando algo que pudesse quebrar com qualquer movimento brusco. A idosa respirava curto, agarrando o braço de Lívia. Obrigada, filha. A palavra bateu forte em Lívia. Ela fechou os olhos por um segundo, sentindo a água correr pelo rosto, misturando chuva e uma emoção que ela não tinha tempo para sentir de verdade. Vamos lá, dona Elsa.
Um passo de cada vez. Ela mal deu o segundo passo, porque de repente um farol forte, branco, potente, iluminou as duas por trás. Um carro preto de luxo freou tão perto que a água da rua subiu e respingou nelas como uma onda. Lívia virou instintivamente, protegendo o corpo da idosa. A porta se abriu com força e um homem alto, de terno escuro, correu em direção às duas, quase escorregando na calçada. Os olhos dele estavam arregalados, assustados, desesperados.
“Mãe!” Lívia congelou. Ele ajoelhou ao lado da senhora, tocando de leve a mão dela. Mãe, pelo amor de Deus. A idosa abriu os olhos, reconhecendo a voz. Gustavo, meu filho. Lívia piscou. O nome soava familiar, como algo que ela já virá na TV numa matéria de jornal, um nome que pesava, mas ela não teve tempo de pensar.
Ele olhou para ela pela primeira vez, um olhar carregado, tenso, mas agradecido. O que aconteceu com ela? Lívia respirou fundo, ainda segurando a idosa. Ela tava caída ali, ninguém parava. Eu eu só não consegui deixar ela sozinha. O homem passou a mão no rosto molhado, um misto de vergonha e alívio. Eu eu seguro ela. Você já fez demais.
Lívia soltou devagar e viu quando ele acolheu a mãe nos braços de um jeito desajeitado, mas cheio de medo de perder. Ela olhou o relógio. A entrevista já tinha ido embora, levada pela chuva. “Qual o seu nome?”, perguntou ele, ainda ofegante. Lívia. Ela quase não reconheceu a própria voz.
Lívia, eu não sei como agradecer, de verdade. Ela deu um sorriso tímido, sem ânimo. Não precisa agradecer. Ela precisava de ajuda. Ele a sentiu devagar, como quem carrega algo que ainda não sabe nomear. Eu vou lembrar de você. O carro arrancou, a água voltou a cair pesada e Lívia ficou ali na calçada, respirando fundo, com o corpo inteiro tremendo, não só pelo frio.
E quando olhou para baixo, viu algo boiando ao lado do pé, o lenço bege de dona Elsa encharcado, esquecido na pressa, um pedaço pequeno de tecido, mas que parecia guardar um aviso silencioso. Aquela história ainda não tinha terminado e o mundo de Lívia estava prestes a mudar, com ou sem entrevista. A chuva amansou, mas o vento não.
E quando o vento não cansa, a cidade parece sempre um pouco mais dura. Lívia caminhava devagar pela calçada da Brigadeiro, como que em volta de uma batalha improvisada. A roupa pesada, a pele colando, o cabelo escorrido. Cada passo fazia o tênis produzir aquele barulho de água espremida. Schlep. Era quase cômico se não fosse tão triste. Ela respirou fundo.
O ar tinha cheiro de poeira molhada, diesel e um certo amargor que não vinha da rua, vinha dela mesma. A entrevista, o chefe imaginário esperando a caneta para assinar a carteira. Tudo escorreu ralo abaixo junto com a enchurrada. Mas por mais que tentasse se convencer disso, a imagem da idosa caída na poça se repetia como replay.
O casaco bege, os dedos tremendo, a voz fraca chamando minha filha. Era impossível não voltar para aquilo. Quando virou a esquina, viu uma padaria pequena com a vitrine iluminada e um letreiro piscando meio falhado. O cheiro de pão francês quente atravessou a porta antes mesmo dela empurrar a maçaneta.
“Ei, meu Deus, menina”, disse a atendente com um avental florido e o coque torto, assim que viu o estado de Lívia. Vem cá, senta aqui perto da máquina de café. Você tá pingando igual telhado furado. Lívia sorriu sem vontade, mas agradecida. A atendente trouxe uma toalha de rosto e colocou uma xícara fumegante na mesa. Pode tomar, não precisa pagar.
A gente ajuda como pode, né? A frase entrou em Lívia como um calor inesperado. Gentileza simples, tinha um jeito de reorganizar o peito dela. “E obrigada, de verdade”, disse ela, abraçando a xícara com as duas mãos, como se segurasse um pedaço de sol. O gosto do café com leite era forte e doce. Lembrava a mãe dela no interior, colocando uma colherada extra de açúcar para espantar o desânimo.
Isso apertou o peito de Lívia de um jeito bom e ruim ao mesmo tempo. Ela pegou o celular para checar as horas, mas a tela iluminou outra coisa, um notificação. Lívia já sabia antes mesmo de ler que não era boa notícia. Senhora Lívia, infelizmente tivemos que seguir com outra candidata. Agradecemos seu interesse. A frase parecia gelada demais para o que ela tinha vivido naquele dia. Curta demais, cruel demais.
Ela respirou fundo, fechou o celular lentamente. A atendente percebeu o silêncio diferente. Era coisa importante? Era”, respondeu Lívia com a voz baixa. “Mas já foi. O barulho da chapa de pão, o rádio tocando um samba antigo, a chuva fina batendo na vidraça. Tudo parecia conspirar para aumentar o buraco que se abria no peito dela, mas ao mesmo tempo havia uma paz estranha ali, como se de algum modo ela soubesse que fez a coisa certa, mesmo que a vida não tivesse retribuído. Quando terminou o café, levantou devagar, deixou a toalhinha
dobrada na mesa e agradeceu outra vez. Se cuida, viu? disse a atendente. Lívia assentiu e saiu. O ar frio bateu no rosto, mas agora parecia menos hostil. A cidade estava tentando voltar ao normal. Carros acelerando, buzinas impacientes, vendedores reabrindo barracas, o cheiro de pastel no ar.
Mas para Lívia nada estava normal. Ela caminhava com os braços cruzados, tentando se proteger do vento e a cabeça longe, muito longe. A lembrança do que aconteceu com a mãe dela quando teve um desmaio, voltou sem pedir. Interior de Minas, calor forte. Mãe sentada na calçada respirando rápido, dizendo: “É só a pressão, filha”. E ela com 14 anos tentando pedir ajuda e ninguém parava.
As duas histórias, a da mãe e a de dona Elsa, se misturaram na mente de Lívia, como se o passado tivesse puxado a mão dela sem avisar. “Velho sofre calado demais”, pensou, apertando o casaco fino contra o peito. “E a gente aprende a fingir que não vê.” Ela parou num ponto de ônibus.
Uma senhora esperava em pé, segurando uma sacola pesada. Um rapaz do lado dela mexia no celular, ocupando o único banco livre. Lívia observou a cena com um incômodo miudinho. Quase foi lá pedir pro rapaz levantar. Quase. Mas o ônibus chegou antes. O incômodo ficou. O dia inteiro parecia feito desses incômodos pequenos.
Coisas que não dão certo, dores que ninguém vê, gentilezas raras que dóem mais do que confortam. Quando o ônibus dela chegou, Lívia entrou pela porta traseira, subiu devagar, segurou na barra metálica fria e deixou o corpo balançar com o movimento. A janela estava embaçada. Ela passou a mão, abrindo um círculo transparente para olhar a cidade, passando rápido demais. De repente, o celular vibrou no bolso.
Ela hesitou. Essa vibração não parecia de mensagem automática, parecia de ligação. Ninguém liga para Lívia de manhã, nem à tarde, nem quase nunca. Ela tirou o celular até ela mostrava. Número desconhecido, DDD1. Ela sentiu o peito apertar. Um frio correu pelas costas, mais forte do que a chuva de antes. Atender ou não atender.
E se fosse cobrança? E se fosse golpe? E se fosse alguém que viu o nome dela sei lá onde? Ela deslizou o dedo com receio. Ah, alô. Demorou um segundo para a voz vir, mas quando veio, foi como uma onda quente batendo no rosto. Lívia Santos? Sim. Quem tá falando? Aqui é o Gustavo Azevedo.
O nome fez o coração dela dar um salto seco, como se tivesse tropeçado dentro do peito. Ela ficou muda por um instante. Do outro lado, dava para ouvir vento, passos rápidos, uma porta batendo. Eu Eu queria falar com você hoje. Agora, se possível. A voz dele tinha algo urgente, algo quebrado, algo que ela reconhecia.
Não da voz de um advogado famoso, mas da voz de um filho com medo. Aconteceu alguma coisa com a sua mãe? Perguntou já tensa. Não quer dizer, ela está em observação, mas está estável. Ela Ele respirou fundo como se as palavras pesassem. Ela quer te ver e eu também. Lívia engoliu seco, olhou pela janela.
A cidade continuava indiferente, mas parecia um pouco em silêncio naquele instante. “Onde você tá?”, perguntou ele. “Eu posso passar aí?” “É importante.” A palavra importante ficou ecoando no fundo da mente dela. Ela olhou o reflexo no vidro, cabelo bagunçado, casaco molhado, expressão cansada. “Eu tô perto da serra de Bragança, na Muca”, disse por fim.
quase como se estivesse se entregando a um destino maior que ela. Não sai daí, eu tô chegando. A ligação caiu. O ônibus seguiu mais três pontos até o dela e Lívia desceu com as pernas meio fracas, não pelo frio, mas pelo que estava prestes a acontecer. Enquanto caminhava até a calçada, a cidade pareceu prender a respiração junto com ela.
E quando o celular apagou sozinho, refletindo a própria imagem no vidro, Lívia percebeu algo estranho. Pela primeira vez naquele dia, ela estava tremendo, não de frio, mas de expectativa. E foi ali parada na calçada molhada, que ela viu, preso na barra do casaco, um fio dourado que ela não lembrava de ter visto antes. Parecia de uma manta, uma manta parecida com a de dona Elsa.
Lívia passou o dedo no fio, sentindo a textura suave, um detalhe pequeno, mas que dava a sensação de que a história não tinha terminado no meio fio, estava só começando. O SUV preto dobrou a esquina da rua Serra de Bragança, como se não pertencesse à aquele pedaço da muca. A rua era simples, cheia de casinhas antigas, muros pichados e árvores tortas. que lembravam gente velha tentando se equilibrar.
O carro desacelerou e parou exatamente onde Lívia esperava, encolhida debaixo de uma marquise, abraçando o próprio corpo como se tentasse não se desmontar ali. A porta se abriu e ele saiu. Gustavo Azevedo, de perto parecia ainda mais alto e mais cansado. O terno sem gravata estava amarrotado nos ombros.
O cabelo arrumado às pressas. Havia um desgaste no olhar. Não o desgaste de quem trabalha demais, mas de quem passou horas tentando segurar algo que estava escapando das mãos. Lívia, perguntou ele como se precisasse conferir se ela era real. Ela a sentiu com um movimento tímido.
Seu primeiro impulso foi esconder os dedos encolhidos de frio dentro das mangas do casaco fino. “Eu vim o mais rápido que pude”, disse ele com uma urgência que contrastava com um ambiente simples em volta. Lívia só conseguiu responder: “Tá tudo bem com a sua mãe?” Ele respirou fundo antes de responder, como se puxasse coragem do ar frio. Tá estável.
Mas ela não parou de falar de você. Lívia apertou a alça da bolsa no ombro, desconcertada. Não fiz nada demais. Gustavo abriu a porta para ela entrar. E, por um instante, Lívia viu o reflexo dos dois no vidro do carro. Ela encharcada e simples, ele elegante e quebrado. Dois mundos que, por algum motivo estranho estavam colidindo. Dentro do SUV, o ar condicionado estava forte demais.
Ela encolheu os ombros tentando não tremer. O cheiro de couro novo, misturado com perfume caro, preencheu o espaço. “Posso aumentar a temperatura?”, perguntou ele, percebendo o desconforto dela. Ela negou com a cabeça. Não precisa não. O silêncio ocupou os primeiros metros do trajeto, só o som do motor e a cidade passando em borrões pela janela. Até que ele falou sem tirar os olhos da rua.
Minha mãe disse que você segurou a mão dela o tempo todo. Lívia não sabia o que responder. Ele continuou. disse que se não fosse você ali, não sabe o que teria acontecido. No fundo, havia um tremor escondido na voz dele. Não era medo do que podia ter acontecido, era culpa do que ele não viu acontecer. “Eu só fiz o que alguém tinha que fazer”, disse Lívia.
Ele soltou uma risada curta, amarga. “Ninguém fez, Lívia, só você.” A frase deixou o ar mais pesado que o silêncio anterior. Ela desviou o olhar para a janela. Lá fora, a cidade parecia correr mais rápido do que seus pensamentos. Quando chegaram ao prédio de Gustavo, Lívia prendeu a respiração sem perceber.
O hall parecia lobby de hotel, piso de mármore claro, iluminação quente, arranjos de flores e um cheiro que lembrava ambiente caro, algo entre limpeza perfeita e perfume discreto de ambiente. O recepcionista de terno impecável ergueu as sobrancelhas ao ver Lívia ao lado de Gustavo. Boa tarde, Dr. Azevedo.
Boa tarde, seu Carlos. Ele fez questão de completar. Ela está comigo. A forma como disse comigo fez Lívia engolir seco. Numa cidade onde alguns olhares valem mais do que palavras. Aquilo era respeito. No elevador, ela ficou perto da porta, sem saber onde colocar as mãos. Sentia o reflexo dos dois nos painéis de Inox. Ele parecia inquieto, passando o polegar repetidas vezes sobre a aliança que não usava, mas que deixou a marca no dedo.
“Desculpa te tirar do seu caminho”, murmurou ele. Lívia balançou a cabeça. “Eu não estava fazendo nada importante. A porta do elevador se abriu. O apartamento era amplo, com janelas enormes que deixavam São Paulo inteira entrar. A luz cinza da tarde atravessava o vidro e deixava tudo com cara de filme triste, bonito, mas melancólico.
E lá, sentada numa poltrona com uma manta fina sobre as pernas, estava dona Elsa. Quando ela ergueu o rosto e viu Lívia, algo iluminou o olhar cansado. “Minha filha”, disse a idosa estendendo a mão. Lívia sentiu o peito apertar. Aquilo bateu como um abraço que ela não estava pronta para receber. Ela se aproximou devagar.
“Como a senhora tá?” “Melhor agora?”, respondeu dona Elsa, apertando a mão dela. “Você me tirou daquela chuva. Eu senti sua mão quente. Achei que fosse desmaiar de vez. A lembrança fez a respiração de Lívia aprender. Ela engoliu a emoção. Gustavo permaneceu em pé alguns passos atrás, olhando as duas.
E pela primeira vez desde o hospital parecia realmente pequeno diante da própria mãe. Dona Elsa virou o rosto para ele com uma força inesperada na voz fraca. Preocupado agora, né, Gustavo? Ele fechou os olhos um instante, como se aquela frase fosse velha conhecida. Lívia tentou tirar a mão, mas a idosa segurou firme, como se a presença dela fosse necessária naquela conversa.
“Mãe”, começou Gustavo, “mas a voz falhou. “Você nunca tem tempo para mim”, disse a idosa, sem raiva, só tristeza. “Eu ligo, você diz que retorna. Eu espero. E esse retorno nunca vem. O silêncio tomou a sala inteira. O ar pareceu mais denso. Lívia sentiu o coração bater forte, como se ela fosse a intrusa num momento muito íntimo. Mas ao mesmo tempo sabia que talvez aquela verdade só estivesse saindo porque ela estava ali. Quando seu pai morreu, dona Elsa continuou com a voz embargada.
Você não foi no enterro. tinha prova. Eu enterrei seu pai sozinha. Gustavo levou a mão ao rosto, apertando os olhos, como se tentasse apagar aquela memória. Mãe, eu era jovem. Eu, você era meu filho”, disse ela com uma doçura que doía mais que qualquer grito.
Lívia não aguentou e olhou para a janela enorme, tentando dar privacidade àquela dor. Mas as palavras vinham uma a uma, como gotas de chuva de um temporal guardado por anos. “E sabe o que mais dói, Gustavo?”, perguntou dona Elsa. É que uma estranha me segurou na rua com mais carinho do que você segurou minha mão nos últimos anos. A frase atravessou o ar como uma lâmina fina.
Lívia apertou a própria mão instintivamente, como se quisesse diminuir o impacto. Gustavo respirou fundo, deu um passo à frente. Eu sei que eu errei. A voz saiu rouca. E eu quero consertar não só com a senhora, mas com ela também. Ele virou para Lívia. Havia algo novo nos olhos dele. Uma mistura de vergonha, gratidão e decisão.
Lívia, eu preciso te pedir uma coisa. Ele engoliu seco. Duas, na verdade. Ela ficou imóvel, o coração batendo tão rápido que parecia fora do lugar. Primeiro, me perdoa, disse ele. Você perdeu sua entrevista por causa da minha mãe, por causa do que eu não vi, do que eu não fiz. Lívia sentiu um calor subir ao rosto, não esperava aquilo.
E segundo, ele respirou fundo, como quem dá um salto sem saber onde vai cair. Eu quero te oferecer um trabalho. O silêncio explodiu dentro dela. Trabalho? Como oficial, certinho, salário digno, registro. Ele falou rápido, como se estivesse convencendo a si mesmo também. Não é pena, é reconhecimento. Você sabe cuidar da minha mãe de um jeito que eu não sei.
Lívia olhou para ele, depois para dona Elsa, depois para o próprio tênis molhado. Eu eu não sei o que dizer. Diz que aceita! Sussurrou dona Elsa, apertando a mão dela. Eu durmo mais tranquila, se você estiver por perto. Lívia fechou os olhos por um instante e naquele segundo breve, ela viu a si mesma segurando a mãe dela no interior.
Anos atrás, viu dona Elsa na chuva. Viu sua vida inteira tentando fazer o certo, mesmo sem ninguém ver. Quando abriu os olhos, respondeu: “Eu aceito. O alívio que atravessou o rosto de Gustavo foi tão genuíno que chegou a desarmá-la. Dona Elsa sorriu, um sorriso miúdo, mas cheio de luz, e enquanto Lívia respirava fundo, tentando entender a virada repentina da própria vida.
Uma coisa chamou sua atenção na janela enorme atrás deles, o reflexo dos três juntos. Ela, a idosa e o advogado, como se fossem uma família recém formada, ainda torta, ainda frágil, mas real. Aquele reflexo não estava ali por acaso. E Lívia soube disso no segundo em que viu, no primeiro dia como funcionária de verdade. Carteira assinada, contrato bonitinho dentro da bolsa.
Lívia chegou cedo, mais cedo do que precisava. A cidade ainda estava acordando. Ainda havia cheiro de pão quente nas esquinas e a luz do sol filtrava entre prédios altos, como se São Paulo tivesse esquecido por um instante que gostava tanto de ser cinza. Ela respirou fundo antes de tocar o interfone. O frio na barriga era o mesmo de quando ela saiu do interior meses antes, carregando apenas uma mala pequena e a esperança de achar qualquer coisa.
Mas agora era diferente. Tinha nome na porta. Tinha alguém que queria que ela estivesse ali. O porteiro, seu Carlos, sorriu quando a viu. Bom dia, dona Lívia. Pode subir, dona Lívia. A expressão fez ela esboçar um sorriso inesperado. No elevador, ela ajeitou o cabelo preso, puxou a blusa simples para baixo e apoiou a mão no peito para tentar controlar a ansiedade.
Quando a porta abriu no andar de dona Elsa, Lívia encontrou a idosa sentada na mesma poltrona de antes, mas com semblante menos cansado, menos aflito. A manta fina ainda cobria as pernas, mas o sorriso, ah, o sorriso parecia mais vivo. “Bom dia, minha filha”, disse dona Elsa antes mesmo que Lívia pudesse falar algo. Lívia se aproximou devagar.
“Dormiu bem?” “Dormi, mas fiquei esperando você chegar.” Ela colocou a mão enrugada sobre a dela. É diferente quando a gente sabe que alguém vem. Lívia engoliu em seco. Aquela frase bateu fundo de um jeito que ela não estava preparada. Os dias seguintes passaram como páginas de um livro que ninguém estava com pressa de fechar. Lívia anotava o horário do remédio num caderninho azul.
Ajudava a preparar o café da manhã. Pão torrado do jeitinho que dona Elsa gostava, com manteiga passando até quase derreter. Acompanhava a idosa nas pequenas caminhadas pelo corredor, ajudava a ajeitar a almofada da poltrona. E quando dona Elsa esquecia alguma coisa, Lívia não corrigia com impaciência, apenas sorria e repetia com calma, como quem já tinha vivido aquilo com a própria mãe.
Às vezes, enquanto dona Elsa cochilava, Lívia limpava a cozinha, ouvindo o rádio baixo, cantando trechos de músicas antigas. O apartamento parecia respirar mais leve e Gustavo, Gustavo aparecia. Às vezes chegava com sacolinhas da feira, pastel quente, caldo de cana, goiabas mais maduras. Outras vezes só sentava ao lado da mãe, segurava a mão dela e ficava em silêncio, olhando para a janela como se aprendesse a ver a cidade com novos olhos.
Lívia assistia tudo de longe, enquanto secava um prato ou organizava as louças. Era como testemunhar uma ponte sendo reconstruída. Tijolo por tijolo. O primeiro grande momento. Aquele que fez o coração de Lívia acelerar, aconteceu numa tarde chuvosa. Dona Elsa tinha acabado de tomar o remédio e parecia mais sonolenta.
Lívia estava guardando algumas roupas quando ouviu a voz dela. Lívia, vem cá um minutinho. A idosa segurava um cachicol novo listrado em tons de vinho, creme e azul marinho. “Comprei para você”, disse ela com um orgulho manso. “Achei bonito e combina com seu rosto.” Lívia ficou sem ar por alguns segundos. “Dona Elsa, a senhora não precisava.
Precisar não precisa, minha filha, mas querer eu quis.” Ela sorriu com o canto dos olhos. Ninguém me dá presente assim. Desde que meu marido era vivo. A frase cortou Lívia como faca e abraço ao mesmo tempo. Ela respirou fundo e apertou o cachicol no peito. Obrigada. Era tudo que ela conseguia dizer sem chorar.
Algumas semanas depois, quando a rotina já estava mais estável, Gustavo chamou Lívia na cozinha. Posso falar com você? Ela virou de imediato apreensiva. O advogado estava com o terno sem palitó, mangas dobradas, expressão cansada, mas um cansaço leve, não aquele cansaço desesperado dos primeiros dias. Eu eu queria te agradecer de novo.
Ele olhou para as próprias mãos como se buscasse nelas frase certa. Eu sei que nunca vou conseguir pagar o que você fez pela minha mãe, mas quero tentar retribuir com presença, com responsabilidade, com algo que faça sentido. Lívia sorriu de leve. sabia que ele estava tentando de verdade. “O senhor já tá fazendo”, disse ela. Ele negou com a cabeça. “Eu falhei com a minha mãe por anos.
Não posso mudar o passado, mas posso mudar cada manhã de agora em diante. E você? Você tá ajudando mais do que imagina.” Ela não sabia o que dizer, então só e aquele silêncio foi suficiente. Mas a cena que ficaria para sempre na memória de Lívia aconteceu numa noite aparentemente comum. Ela estava lavando a louça, ouvindo a água cair na pia.
Quando a conversa entre Gustavo e dona Elsa na sala começou a atravessar as paredes. Mãe! A voz dele estava baixa, quase quebrando. Me perdoa. Lívia parou. Não virou para olhar, mas ficou imóvel, segurando o prato ensaboado nas mãos. Me perdoa pelos aniversários que eu faltei. Me perdoa pelos domingos em que eu disse que ia aparecer e não apareci.
Me perdoa pelas chamadas não atendidas. Eu fui um filho ausente, mas eu não quero ser mais. Demorou alguns segundos até a voz trêmula de dona Elsa responder. Eu esperei muito tempo por isso, meu filho. Lívia sentiu os olhos encherem d’água. Parecia que aquele pedido de perdão atravessava não só aquela sala, mas a vida de muita gente que já tinha esperado o mesmo de alguém.
Ela respirou fundo e voltou a lavar o prato, enxugando discretamente as lágrimas misturadas com a água da pia. No dia seguinte, logo após o almoço, dona Elsa chamou Lívia no sofá. Senta aqui comigo, quero te dar uma coisinha. Ela entregou um envelope pardo, simples, leve para você. Lívia abriu devagar.
Dentro havia uma foto antiga, dona Elsa, jovem, com Gustavo ainda menino no colo, sorrindo diante de uma casa modesta no interior, no verso escrito à mão: “Obrigada por lembrar meu filho, de quem eu sempre fui”. Lívia levou a mão à boca, tentando conter o soluço que subia devagar. “Dona Elsa, eu eu não tenho palavras.” A idosa tocou sua mão com delicadeza.
Você salvou duas vidas naquele dia, minha filha. A minha e a dele. Lívia deixou as lágrimas caírem sem vergonha. Dessa vez a foto tremia entre seus dedos. Foi quando Gustavo apareceu na porta da sala, observando as duas. Acho que agora a gente tem tudo que nunca teve, né? Ele disse com um sorriso pequeno e sincero.
Dona Elsa sentiu emocionada. Temos, meu filho. Temos, sim. Lívia olhou para a foto novamente, a antiga e a nova, porque naquele momento ela sentiu que fazia parte de algo, mesmo que pequenininho, mesmo que discreto, algo que tinha sido reconstruído. Enquanto isso, o sol atravessava as janelas enormes do apartamento, refletindo no vidro da moldura recém colocada sobre o aparador.
E no reflexo do vidro, lado a lado, apareciam três figuras: ela, como se de algum jeito inesperado, aquela família tivesse aberto espaço para mais um coração ali. E naquele instante, Lívia percebeu: “Algumas histórias não começam quando a gente chega, começam quando alguém finalmente olha pra gente como família. M.





