O som veio antes da imagem. Um bip seco, curto, definitivo. Aquele som grita, mas corta. Cartão recusado. A farmácia inteira pareceu prender a respiração por um segundo. As luzes brancas, fortes demais, refletiam no chão de mármore, como se tudo ali fosse limpo, caro e inalcançável. O cheiro de perfume importado, misturado com álcool em gel.
dava uma sensação estranha de asepsia e julgamento. Lívia Rocha ficou imóvel diante do balcão. O cartão ainda estava entre os dedos dela, dedos ressecados, com pequenas manchas claras que o sabonete industrial nunca conseguia tirar. A unha do polegar estava lascada. Ela percebeu isso. Percebia essas coisas quando ficava nervosa. Deve ter algum erro, disse quase num sussurro.
Pode tentar de novo, por favor? A atendente não olhou para ela, apenas suspirou exageradamente, como quem já tinha decidido a história antes mesmo de ouvir o começo. Já tentei duas vezes. Voz saiu impaciente, fundo insuficiente, atrás de Lívia, o som das pessoas mudando o peso do corpo. Um salto batendo no chão, um relógio caro sendo conferido com impaciência, um celular desbloqueado, câmera pronta, por curiosidade ou tédio.
Ela engoliu em seco. Sobre o balcão, ao lado da maquininha, estava a pequena caixa branca dos remédios, letras azuis, nome complicado, uso contínuo, coração. 31240. Lívia sabia o valor de cor. Sabia porque tinha feito as contas na cabeça durante o trajeto inteiro, no ônibus lotado, ainda com cheiro de desinfetante grudado na roupa do trabalho.
Sabia porque aquele número significava 30 dias a mais para a mãe respirar sem dor. Moça, ela tentou de novo, agora com a voz um pouco mais firme, como se firmeza pudesse convencer o sistema. É para minha mãe. Ela tá internada no SUS. Se ela ficar sem esse remédio, senhora.
A atendente a interrompeu, finalmente levantando os olhos. O olhar era frio, treinado, profissional. Eu não posso fazer nada. A palavra senhora soou deslocada. Lívia tinha 29 anos, mas naquele momento parecia mais velha, ou menor, difícil dizer. Próximo. A mão da atendente fez um gesto curto, chamando quem vinha atrás, como quem empurra uma coisa para fora da mesa. Lívia não se mexeu.
Ela sentiu o calor subir pelo rosto, o peito apertar, o barulho do shopping, música, ambiente, passos, conversas, parecia distante demais, como se estivesse debaixo d’água. Só mais uma tentativa. Pediu, por favor. Foi quando uma sombra se aproximou pelo lado. Tem algum problema aqui? A voz era grossa, segura. Voz de quem está acostumado a ser obedecido. Lívia virou o rosto devagar.
O segurança do shopping era grande, uniforme impecável, postura ereta, um rádio preso ao ombro. O crachá brilhava sob a luz. Jorge, essa mulher está atrapalhando o atendimento”, disse a atendente rápida. Cartão recusado, não quer sair. Jorge olhou para Lívia de cima a baixo. O uniforme azul da limpeza, a blusa branca um pouco manchada, apesar das tentativas.
O tênis simples gasto nas laterais. O olhar dele não era exatamente raiva, era algo pior. Era desinteresse misturado com certeza. Senhora, ele disse, esse é um estabelecimento privado. Se não pode pagar, precisa se retirar. Se não pode pagar, as palavras ficaram suspensas no ar. Lívia sentiu um nó se formar na garganta.
pensou na mãe, dona Elsa, sentada na cama estreita do hospital, dobrando cuidadosamente a camisola, como se aquilo fosse manter alguma ordem no mundo. Pensou no jeito como ela sempre dizia: “A gente pode não ter dinheiro, filha, mas não deixa ninguém tirar sua dignidade. Eu só preciso desses remédios”, disse Lívia, baixinho. “Depois eu vou embora”. George deu um passo à frente.
Aqui não é lugar para esse tipo de situação falou já estendendo a mão. Vamos. Os dedos dele se fecharam no braço dela com força desnecessária. Não chegou a machucar, mas foi o suficiente para dizer: “Acabou”. Um murmúrio percorreu a fila. Alguém riu nervoso. Alguém comentou algo que Lívia não conseguiu ouvir direito. Um celular foi levantado um pouco mais alto.
Ela tentou puxar o braço de volta. O senhor tá me machucando. Devia ter pensado nisso antes. Jorge respondeu baixo, perto demais. Gente como você sempre quer ultrapassar o limite. Gente como você. O chão parecia escorregar sob os pés de Lívia, enquanto ele a conduzia em direção à saída da farmácia.
Cada passo era pesado, cada olhar queimava. Foi então que o som cortou tudo. Um choro agudo, desesperado, um choro pequeno, mas forte o suficiente para atravessar o burburinho do shopping como uma lâmina. Mamãe, mamãe. Jorge parou. Lívia também. O choro vinha de trás. rápido, acompanhado de passos curtos, apressados, batendo no chão. As pessoas se viraram quase ao mesmo tempo.
Um menino pequeno, talvez 2 anos, corria entre as pernas dos adultos com uma urgência que não combinava com o ambiente sofisticado, roupas caras, tênis limpo, cabelo castanho encaracolado, o rosto vermelho molhado de lágrimas. “Tomás!”, Alguém gritou ao fundo, uma mulher. A voz cheia de pânico, mas o menino não parou.
Ele correu direto até Lívia e, sem hesitar, abraçou as pernas dela com força, como se finalmente tivesse encontrado algo sólido depois de muito procurar. Mamãe repetiu com a voz falhada. Jorge soltou o braço de Lívia no mesmo instante, como se tivesse levado um choque. O shopping inteiro congelou. Lívia olhou para baixo, o coração disparado, sem entender.
O menino apertava o rosto contra a calça dela, respirando rápido, o corpo pequeno, tremendo. “Ei”, ela murmurou por instinto, ajoelhando-se. “Calma, pequeno, calma.” A mão dela subiu devagar e tocou o cabelo do menino, macio, quente, um gesto simples, automático. O choro diminuiu. Tomás levantou o rosto, os olhos verdes, grandes demais para aquele rostinho. Encontraram os dela e então algo mudou. Ele sorriu.
Um sorriso aberto, luminoso, um sorriso de reconhecimento, como se visse alguém que sempre esteve ali. “Mamãe cheira a flor”, disse tocando o rosto de Lívia com a ponta dos dedos. O silêncio que se seguiu foi absoluto. A atendente estava pálida. Jorge não sabia onde colocar as mãos.
A mulher que vinha correndo, a babá, parou a poucos passos, sem fôlego, sem voz. Lívia sentiu o mundo girar devagar. Ela não sabia quem era aquele menino, não sabia de onde ele vinha. Só sabia de uma coisa. Naquele exato momento, com o shopping inteiro olhando, alguém finalmente não havia como um problema.
via como abrigo no chão, perto do balcão. A caixa de remédio continuava caída, aberta. As cápsulas haviam rolado um pouco, parando perto de um guardanapo de papel esquecido sobre uma bancada lateral, branco, amassado, sozinho, e ninguém, absolutamente ninguém, ousava se mover. O tempo voltou a andar aos poucos, como se alguém tivesse girado um botão invisível.
Primeiro o som distante do shopping, depois o sussurro das pessoas. Em seguida, passos apressados ecoando no mármore. Mas para a Lívia Rocha, tudo continuava lento demais, pesado demais. Ela ainda estava ajoelhada no chão da farmácia, com aquele menino agarrado às suas pernas, como se o mundo inteiro pudesse desabar se ele soltasse.
“Senhorito Tomás!”, A voz da babá saiu trêmula, quase sem fôlego. Por favor, vem comigo. O menino não respondeu. Apenas apertou mais forte os braços ao redor das pernas de Lívia e enterrou o rosto no tecido simples da calça dela. O cheiro de sabonete barato, misturado com um desinfetante, parecia acalmá-lo.
Ela sentiu a respiração dele desacelerar aos poucos, encostada em sua pele. Eu não sou sua mamãe”, disse Lívia num tom baixo, mais para si mesma do que para ele. “Sua mamãe deve estar procurando você”. Tomás balançou a cabeça ainda sem soltar. “Mamãe aqui! Foi então que uma presença diferente tomou o espaço. Não veio correndo, não veio gritando, veio andando. Passos firmes, medidos.
O som do couro do sapato ecoando no chão do shopping como um metrônomo de autoridade. As pessoas se abriram instintivamente, formando um corredor silencioso. Lívia levantou o olhar. O homem que se aproximava era alto, de postura rígida. Usava um terno escuro perfeitamente ajustado ao corpo, sem uma dobra fora do lugar. O cabelo estava penteado para trás, revelando um rosto sério, marcado por olheiras discretas, daquelas que não se resolvem com descanso.
Os olhos cinza varreram a cena com rapidez cirúrgica, pararam no menino, depois, nela. Mateus Navarro não precisava se apresentar. Lívia já tinha visto aquele rosto em capas de revista, em telas de elevador corporativo, em manchetes que falavam de prédios, investimentos, cifras grandes demais para imaginar. Mas ali, parado diante dela, ele parecia diferente, não furioso, não arrogante, assustado.
“Tomás”, disse num tomido. “Vem com o papai”. O menino levantou o rosto devagar, ainda segurando Lívia. Olhou para o homem como quem olha para alguém distante, conhecido, mas não exatamente seguro. “Papai”, murmurou. Depois virou de novo para Lívia. Mamãe cheira flor branca.
Mateus sentiu o golpe como se alguém tivesse arrancado o ar de seus pulmões, flor branca. Ele conhecia aquelas palavras, conhecia aquele cheiro, gardênia, jasmim, lírio, um perfume que não existia mais, guardado em um frasco esquecido no fundo de um armário que ele não tinha coragem de abrir. O silêncio voltou a se espalhar.
“Qual é o seu nome?”, perguntou ele por fim, com a voz baixa, mas firme. Lívia demorou um segundo para responder. Sentia todos os olhares sobre ela, mas estranhamente não sentia vergonha. Sentia algo parecido com vertigem. Lívia, Lívia Rocha, o que você estava fazendo aqui, Lívia Rocha? Ela respirou fundo. Vim comprar remédio para minha mãe. Meu cartão não passou. Mateus lançou um olhar rápido ao balcão.
A caixa caída no chão. Ao segurança agora pálido demais, rígido demais. Entendo. A palavra caiu como uma pedra pesada, mas não agressiva. Ele se aproximou e se agachou à altura do filho. Não tentou tocá-lo de imediato, apenas ficou ali no mesmo nível, respeitando o espaço que Tomás havia escolhido ocupar. Filho, essa moça não é sua mãe.
Tomás franziu a testa como se a frase não fizesse sentido. Mamãe aqui repetiu, levando a mãozinha ao rosto de Lívia. Cheira igual. Mateus fechou os olhos por um instante. Quando abriu, havia algo diferente neles. Não era apenas dor, era memória. Ele se levantou devagar. Vamos sair daqui”, disse, olhando ao redor.
Agora a babá assentiu ainda em choque. O segurança deu um passo para trás, quase em continência involuntária. “Es remédios?”, Lívia perguntou sem pensar. Mateus parou, virou-se para ela com atenção real, como se aquela fosse a primeira vez que realmente a enxergava. “Pode deixar”, respondeu. “Isso não é um problema.
Ele fez um gesto curto com a mão. A babá correu até o balcão, pegou a caixa, passou um cartão preto pela maquininha. Não houve bip, não houve erro, apenas um aprovado silencioso. Enquanto caminhavam em direção à saída, Tomás se recusou a soltar Lívia. Ela sentia o peso pequeno nos braços, o calor, o jeito confiante com que ele se aninhava nela, como se aquilo fosse natural.
Do lado de fora, o ar da noite estava mais fresco. As luzes do estacionamento refletiam na lataria de um carro preto que aguardava com o motor ligado. Mateus abriu a porta traseira. Entre, disse a Lívia, sem impor, mas sem dar opção. Ela hesitou. Senhor, eu é só até deixarmos você em casa, completou ele. E até meu filho se acalmar.
Ela entrou. O carro arrancou suavemente. O vidro escuro isolava o mundo lá fora. Dentro o silêncio era diferente, menos pesado. Tomás já bocejava, a cabeça apoiada no ombro de Lívia. Mateus observava pelo retrovisor. “Quanto você ganha?”, perguntou sem rodeios.
Lívia engoliu em seco um salário mínimo, às vezes um pouco mais com hora extra. E se eu te oferecesse R$ 50.000 por mês? Ela achou que tinha ouvido errado. Como é? Para ficar com meu filho por seis meses. Morar na minha casa, ser? Ele hesitou, escolhendo as palavras, a referência materna que ele perdeu. O carro continuava andando, o mundo parecia suspenso.
“Isso é um trabalho”, ele continuou. “Com contrato, com data para acabar. Depois disso, você pode ir embora com uma compensação generosa.” Lívia sentiu o coração bater forte demais. 50.000. Aquele valor pagava todos os remédios da mãe, todas as dívidas, comprava tempo, comprava dignidade. Mas quando olhou para baixo, Tomás dormia tranquilo, a mãozinha fechada na gola da blusa dela, como se tivesse medo de acordar sozinho.
“E se eu disser não?”, perguntou num fio de voz. Mateus não desviou o olhar da estrada. Eu entendo, respondeu, mas meu filho precisa de alguém. E hoje fez uma pausa. Hoje ele escolheu você. O carro diminuiu a velocidade. Lívia fechou os olhos por um instante. Pensou na mãe, pensou na farmácia, pensou no jeito como aquele menino tinha corrido até ela, sem pensar duas vezes.
Quando abriu os olhos, a cidade passava devagar pela janela. Eu aceito”, disse Mateus. Respirou fundo, como se não soubesse que estava esperando por aquela resposta. No reflexo do vidro, Lívia viu o próprio rosto. Não parecia mais alguém sendo empurrada para fora de um lugar. Pela primeira vez naquela noite, parecia alguém que estava entrando em algo sem saber se conseguiria sair.
A mansão ficava no alto do Morumbi, escondida atrás de muros altos e árvores antigas que pareciam ter sido plantadas para vigiar, não para acolher. Quando o carro atravessou o portão de ferro, Lívia sentiu o estômago apertar, não de medo, mas de estranhamento. Era como entrar num lugar onde o silêncio tinha dono.
O motor desligou, o som morreu e nada veio no lugar. Nenhum latido, nenhuma música distante, nenhuma risada. A casa não respirava. Tomás acordou no colo de Lívia quando ela desceu do carro. esfregou os olhos confuso e olhou ao redor com atenção séria demais para uma criança de do anos. Não sorriu, apenas apertou o pescoço dela com mais força. “Casa”, murmurou sem entusiasmo.
A porta principal se abriu antes que Mateus tocasse a campainha. Dona Celina surgiu no batente como se estivesse ali há horas. Cabelos grisalhos presos num coque firme, vestido escuro impecável, postura reta. Os olhos avaliaram Lívia em silêncio, não com desprezo, mas com uma cautela antiga, quase protetora.
Boa noite, senhor Navarro. Boa noite, Celina, respondeu Mateus. Esta é Lívia Rocha. A partir de hoje, ela ficará responsável pelo Tomás. Um leve tremor passou pelo rosto da mulher. Não chegou a ser surpresa, foi reconhecimento. Entendo disse ela após um segundo. Seja bem-vinda. Lívia respondeu com um aceno tímido, sentindo-se pequena demais para aquele corredor amplo, iluminado por lustres que pareciam não iluminar nada de verdade.
O interior da casa era bonito, sofisticado, frio. O chão de mármore refletia os passos como um espelho. As paredes tinham quadros caros demais para serem comentados. O ar tinha cheiro de limpeza recente, mas não de gente, não de vida. Tomás escorregou do colo de Lívia assim que entraram.
Caminhou devagar, observando tudo, como se estivesse entrando em território desconhecido, apesar de ser sua própria casa. Parou no meio do saguão e ficou ali imóvel. Filho, Mateus chamou. O menino não respondeu, apenas se virou e voltou para Lívia, segurando a barra da blusa dela com força. Dormir com mamãe disse simples, direto.
Mateus abriu a boca para responder, mas não disse nada, apenas respirou fundo. Celina, prepare o quarto de hóspedes falou. Aquele ao lado do quarto do Tomás. A governanta hesitou. O quarto da senhora Ana Luía? Perguntou com cuidado. O nome caiu no chão como um objeto quebrável. Mateus a sentiu uma única vez. Esse mesmo.
Lívia não sabia quem era Ana Luía. Ainda não, mas sentiu um arrepio subir pela nuca. Algo naquela casa tinha memória demais. Os dias começaram a passar devagar. De manhã, a luz entrava pelas janelas enormes, mas parecia não aquecer. Tomás acordava cedo e, pela primeira vez em muito tempo, comia pouco, mas comia.
sentado ao lado de Lívia, derrubava migalhas. Raia quando ela limpava seu rosto com o guardanapo. Mateus observava tudo à distância, sempre vestido para o trabalho, sempre olhando o relógio. “Ele tem às 10”, dizia, natação às 3, psicóloga às sextas. Lívia ouvia, guardava, mas também fazia diferente. Levava Tomás para o jardim nos intervalos.
Deixava ele tocar a terra, sujar as mãos, perseguir borboletas invisíveis. Cantava músicas que a mãe cantava quando faltava luz em casa. Canções simples, sem melodia perfeita. Tomás ria alto, solto e a casa começava a reagir, não de imediato, mas em detalhes. Uma porta que antes rangia, agora ficava aberta. Um corredor que parecia longo demais, agora tinha pegadas pequenas no chão.
O silêncio aos poucos aprendia a dividir espaço. Mateus percebeu antes de admitir. Numa noite, voltou mais cedo do que o habitual. Encontrou Lívia sentada no tapete da sala com Tomás deitado sobre o peito dela, dormindo pesado. Um livro infantil aberto ao lado, a luz baixa, a TV desligada.
Ele ficou parado na porta sem ser visto. O filho respirava fundo, regular, seguro. Mateus sentiu algo apertar dentro dele. Algo que não sentia desde antes do acidente, desde antes da casa parar de respirar. Você não devia deixar ele dormir fora do quarto, disse por fim, quebrando o silêncio. Lívia levantou o olhar devagar.
Ele adormeceu assim. respondeu sem defensiva. Eu ia levá-lo agora. Mateus a sentiu, mas não se moveu. Apenas observou enquanto ela se levantava com cuidado, ajustando o peso do menino nos braços, protegendo-lhe a cabeça com a mão. Naquele gesto simples, havia algo que ele não sabia nomear. No dia seguinte, Verônica Moura apareceu, chegou sem avisar, como se a casa também fosse dela. Vestido claro, salto alto, sorriso perfeito.
Os olhos, porém, eram atentos demais. Então, essa é a famosa babá, disse, olhando Lívia dos pés à cabeça. Ouvi falar. Lívia sentiu o ar mudar. Lívia corrigiu com educação. Verônica sorriu mais. Claro, Lívia. Tomás, que brincava no chão, levantou o rosto ao ouvir a voz dela, franziu o senho, aproximou-se de Lívia e segurou sua perna. “Não gosta”, murmurou. Verônica fingiu não ouvir.
“Mateus, precisamos conversar sobre o jantar de amanhã”, disse e sobre certas decisões impulsivas. Mateus manteve o tom neutro. Ah, agora não é um bom momento. Nunca é. Quando envolve ela, respondeu Verônica, baixa demais para Tomás ouvir, mas clara o suficiente para Lívia sentir.
Naquela noite, Rafael, o assistente encontrou Lívia no corredor. “Posso falar com você um minuto?”, perguntou. Eles pararam perto da escada lateral, longe dos quartos. “Eu não devia”, ele disse, ajustando os óculos. “Mas você precisa saber. Essa casa não ficou assim por acaso. Lívia sentiu o coração acelerar. O que você quer dizer? Rafael baixou a voz. A morte da senora Ana Luía não foi um acidente simples.
E há pessoas aqui que não querem que isso venha à tona. Antes que ela pudesse perguntar mais, passos se aproximaram. Rafael se afastou. Só tome cuidado”, disse antes de ir. Naquela madrugada, Lívia acordou com Tomás inquieto. Ele choramingava, suado, se mexendo na cama. “X!”, ela sussurrou, embalando-o. “tô aqui.” Ele abriu os olhos, assustado.
“Mamãe, casa tá sem ar”. Lívia engoliu em seco, olhou ao redor do quarto, grande, silencioso, impecável. E pela primeira vez, entendeu? Não era só a casa que não respirava, era a verdade presa nas paredes. Ela puxou Tomás para mais perto, sentindo a respiração dele se acalmar contra o peito dela. Do lado de fora, no corredor, uma porta que sempre ficava fechada permanecia entreaberta pela primeira vez em anos.
O fim de tarde tinha um sol bonito demais para o que estava prestes a acontecer. A luz dourada atravessava as folhas do jardim e desenhava sombras compridas no gramado, como dedos tentando alcançar alguma coisa. Tomás corria atrás de uma bolinha amarela, rindo com aquela risada que ainda parecia novidade naquela casa.
Lívia observava de longe, sentada no degrau da varanda. respirando devagar, tentando guardar aquele som dentro dela. Por alguns segundos dava para fingir que tudo estava bem, até que o riso parou. Não foi um grito, não foi um choro imediato, foi o silêncio, um silêncio pequeno e errado. Lívia levantou o rosto. Tomás, nada.
Ela se pôs de pé num impulso, os olhos varrendo o jardim. A bolinha estava ali parada perto do caminho de pedras, mas ele não. O coração de Lívia bateu tão forte que ela sentiu na garganta. Tomás, meu amor. Luciana, uma das funcionárias mais jovens, apareceu na porta lateral com o celular na mão, o rosto branco. Dona Lívia, eu eu fui responder uma mensagem da dona Celina.
Foi um minuto quando eu voltei. Lívia já estava correndo. O cascalho do caminho machucava o pé através do tênis. As flores, antes bonitas, pareciam agora obstáculos. Ela gritou o nome dele mais uma vez, mais alto, sem se importar com nada. E então viu Mateus saindo da casa como um homem que já sabia antes de ouvir onde ele está.
A voz dele não saiu como a do empresário, saiu como a de um pai no limite. “Eu não sei”. Lívia respondeu ofegante. Ele estava aqui agora. Mateus virou o rosto como se procurasse uma resposta no vento. A mão já estava no telefone. Segurança. Agora, em minutos, homens surgiram pelos cantos do terreno, como se brotassem das árvores, lanternas, rádios, passos rápidos. A mansão, que sempre parecia dormir, acordou em alerta. Lívia não pensava.
Ela só sentia. Sentia o vazio onde Tomás deveria estar. Sentia uma imagem dele atravessando um portão, caindo em algum lugar, chamando por ela e não sendo ouvido. Sentia um gosto metálico de medo. Rafael surgiu na varanda interna, chamando: “Senhor Navarro, as câmeras pegaram alguma coisa.
Todos correram para a sala de controle. Um cômodo frio cheio de monitores. Rafael apertou alguns botões com dedos firmes, tentando manter a voz estável. A imagem mostrou o parquinho de areia onde Tomás brincava. Ele estava lá concentrado fazendo um castelo. Luciana saiu de cena olhando o celular.
90 segundos depois, uma figura apareceu atrás dos arbustos. Capuz, luvas, passos calculados. A figura se agachou, falou algo para Tomás e o menino segurou a mão daquela pessoa como se conhecesse, como se tivesse sido chamado pelo nome certo. Lívia sentiu as pernas fraquejarem. Quem é? Mateus rosnou, se inclinando para a tela. Rafael trocou os ângulos.
Em todos o capuz cobria o rosto com precisão, como se a pessoa conhecesse cada ponto cego, cada câmera, cada limite do sistema. Alguém de dentro, Lívia sussurrou sem querer e se odiou por pensar isso. Mateus ouviu e a palavra ficou entre eles como uma lâmina. Para onde foram? Rafael seguiu o caminho. Jardim de rosas, labirinto de sebbes, parte antiga da propriedade.
E então a imagem sumiu. Aqui, Rafael apontou. Ponto cego, a área do antigo viveiro, a estufa velha. Dona Celina apareceu na porta como um fantasma chamado por um nome, a estufa. Ela disse num tom estranho. Lá as câmeras não pegam nada, nunca pegaram. Mateus não esperou. Os guardas correram na frente.
A estufa ficava no canto mais distante, coberta por trepadeiras, vidro sujo, madeira velha, um lugar esquecido, como se a casa tivesse enterrado aquilo ali para não ver. Quando chegaram, a porta estava fechada. Tomás. Mateus bateu com força. Filho, responde. Silêncio. Um silêncio que engolia tudo. Lívia colou o ouvido da porta e sentiu um frio percorrer a espinha.
Não era só medo, era intuição. Aquela certeza sem prova de que algo estava terrivelmente fora do lugar. Arrebenta Mateus ordenou. Um guarda trouxe um ariete. O primeiro golpe fez a madeira tremer. O segundo rachou. O terceiro abriu de vez. O cheiro veio antes de qualquer imagem. Poeira, umidade antiga, planta morta.
O ar lá dentro parecia parado há anos. E no centro, Tomás estava sentado no chão, imóvel, os olhos arregalados, mas distantes, como se ele estivesse olhando para um lugar que ninguém mais via. Nas mãos, uma fotografia velha. Lívia aproximou-se e o coração dela parou por um segundo.
A foto mostrava uma mulher sorrindo, linda, com um vestido claro, cercada por flores brancas, um rosto que parecia iluminar o papel. Mateus ficou pálido. Ana Luía. Ele murmurou como se falar o nome doisse fisicamente. Ele se ajoelhou devagar, com cuidado demais. Filho, papai tá aqui. Tomás não reagiu, então a boca dele se mexeu.
Mamãe, mamãe voltou. Lívia sentiu o ar faltar. Ela se agachou ao lado dele, ignorando o vestido simples, sujando no chão. Tomás, olha para mim. Quem te trouxe aqui? O menino virou o rosto lentamente e o que Lívia viu naquele olhar pequeno não era só tristeza, era terror. A mamãe de antes, ele sussurrou tremendo. Ela falou: “Segredo aqui”. Alguém machucou ela.
Mateus se endireitou como se tivesse levado um golpe no peito. Que segredo, filho? Tomás começou a soluçar e se agarrou ao pescoço de Lívia com força. Ela o levantou no colo e sentiu o corpo dele tremer inteiro como um passarinho na mão. Foi quando Rafael chamou de um canto escuro. Senhor, vem ver isso.
Atrás de uma estante caída, na parede do fundo, havia palavras antigas, quase apagadas, escritas com tinta já descascando. Alguém escrevera com pressa, com desespero, como quem deixa um último recado antes de ser engolido. Não foi acidente. Os freios. Ela sabia. Procure o diário. Mateus ficou imóvel.
Os olhos cinza, antes estão controlados, agora pareciam cheios de fogo e gelo ao mesmo tempo. O diário ele sussurrou. Eu achei que tinha sumido. Dona Celina apareceu no batente da porta, as mãos juntas como se rezasse. A voz dela saiu diferente, mais velha, mais pesada. Eu sei onde está, Senr. Navarro. Mateus virou para ela lentamente.
Você sabia? Os olhos da mulher encheram d’água, mas ela não chorou. Não, ainda. Eu sabia que havia algo errado desde o começo disse. E eu guardei porque ela me pediu porque ela tinha medo. O ar dentro da estufa parecia apertar. Lívia segurou Tomás mais forte, sentindo o cheiro de shampoo infantil misturado com poeira.
O menino escondia o rosto no ombro dela, como se ali fosse o único lugar seguro do mundo. Mateus deu um passo em direção à governanta. Então você vai me contar tudo hoje. Lívia olhou para ele e pela primeira vez não viu o homem da revista. Viu um pai quebrado de novo, mas agora, com uma luz acendendo dentro da dor. Lá fora, o céu começava a escurecer.
Uma brisa fria entrou pelas frestas do vidro quebrado, fazendo a fotografia antiga tremular na mão de Tomás. E no reflexo daquele vidro sujo, Lívia viu seu próprio rosto e entendeu que não estava mais ali só por um contrato. estava ali porque a verdade tinha escolhido chegar pela boca de uma criança.





