Ele não deveria estar lá. O relógio no painel do carro marcava sete para 30, trinta minutos antes da hora em que aquela casa costumava despertar para fingir que eu ainda estava vivo. A fuga de Rodrigo Azevedo era esperada. Nada dramático, apenas uma mudança de técnica. Mas às vezes o destino não precisa de grandes gestos.
Trinta minutos são suficientes. O portão de ferro da mansão no Morumbi abriu-se silenciosamente, obedientemente como sempre. Rodrigo entrou no carro, sem buzina, sem pressa. O motor quente ainda engasgava quando ele desceu, ajustando o caro palito de dente no corpo cansado. O céu de São Paulo estava pesado, num tom alaranjado de fim de tarde, demais para combinar com o que ele carregava dentro.

A casa o acolheu como um museu fechado, ar condicionado, frio, piso de mármore polido, um cheiro de limpeza excessiva, quase artificial, produto de um limpador cítrico misturado com perfume de flores intocadas. Tudo estava exatamente onde deveria estar, tudo menos ele. Rodrigo atravessou o hall sem olhar para os quadros, sem tocar no tampo de vidro da mesa onde sempre deixava as chaves.
Ele afrouxou a gravata com dois dedos, num gesto automático, e soltou o ar dos pulmões como se preparasse para mais uma noite como as outras. Silêncio. Um silêncio denso, ancestral, daqueles que não ouvem, não sentem. Ó, o mesmo silêncio que ocupava cada canto daquela casa desde o funeral de Ana, dois anos antes.
O mesmo silêncio que envolvia sua filha, Lívia, como uma cúpula invisível. Rodrigo sabia exatamente como seria. A governanta em algum canto da casa, degraus entreabertos, vozes baixas. Lívia no quarto ou na sala de brinquedos, organizada, limpa, silenciosa. Demais para uma criança de 3 anos. Ele caminhava em direção à escada quando algo o fez parar.
Não foi um barulho alto, não foi um grito, foi uma risada. Rodrigo congelou. A mão ainda estava no nó da gravata quando o som atravessou o corredor. Uma risada aberta, solta, descontrolada. Não uma risadinha educada, não um som ensaiado. Era uma risada verdadeira. Uma risada que vibra no peito, uma risada que preenche o espaço. O coração de Rodrigo deu um salto.
Aquela risada não pertencia àquela casa. E pior, era dolorosamente familiar. Por um segundo, foi absurda, quase cruel. Ele pensou em Ana. Pensou no som da risada da esposa na cozinha, anos atrás, descalça, com música antiga tocando baixo, quando o mundo ainda fazia sentido. Rodrigo engoliu em seco.
A risada voltou, mais alta, mais viva. Ele virou o corpo lentamente, como se temesse que um movimento brusco pudesse fazê-la desaparecer. Caminhou por um longo corredor, os sapatos italianos mal fazendo barulho no piso polido. Cada passo parecia invadir algo que não lhe pertencia mais. Ao chegar à porta dupla da cozinha, parou na moldura e então viu a luz dourada do fim da tarde. Entrou pelas janelas de vidro, espalhando partículas de poeira no ar, como se o tempo tivesse acabado de desacelerar.
Por aquele instante, o som da correnteza se misturava a uma melodia baixa, quase um zumbido. No centro da cena estava Janaína, a nova diarista, jovem, morena, de uniforme simples, luvas amarelas cobertas de espuma branca, lavando a louça com movimentos rítmicos, quase dançantes. Mas não era isso que fazia o sangue de Rodrigo gelar.
Nos ombros dela, sentada como uma pequena comandante, estava Lívia, sua filha. A mesma menina que, meses atrás, não emitia nada além de suspiros. Uma criança que respondia com silêncio, que olhava através das pessoas como se estivesse longe demais para voltar. Lívia segurava os cabelos presos. Jana, inclinada para a frente, ria tão alto que o som ecoava pelas paredes e voltava. “Mais alto.”
“Voa, Jana!”, gritou ele para a menina entre risos. Rodrigo sentiu o chão tremer sob seus pés. Ela falava, ela ria. A espuma da torneira espirrava em gotas brilhantes quando Jana levantava os cotovelos, fingindo que o corpo era um avião em turbulência. Os cabelos de Lívia balançavam, os olhos fechados de pura alegria.
Era uma imagem tão vívida, tão dissonante com aquela casa morta, que doía. Rodrigo levou a mão ao peito sem perceber. Por um instante, sentiu alívio, um alívio tão intenso que quase doía mais do que a tristeza. Depois veio a incredulidade e logo em seguida, como um animal que acorda de repente, o medo. E se ela caísse? E se escorregasse? E se aquela mulher, aquela estranha, deixasse sua filha cair? O riso de Lívia, que deveria ser música, transformou-se em ameaça.
Jana permanecia alheia. Cantava baixinho uma canção antiga, embalando o corpo com um “cuidado”, como alguém que sabe exatamente o peso que você carrega. O sol desenhou um “olá” dourado ao redor dos dois, quase celestial. Rodrigo cerrou os punhos. Algo se contorcia dentro dele. Não era apenas medo, era ciúme. Um ciúme feio, profundo, que não tinha nome.
Não de homem para mulher, mas de pai para pai. Como se alguém estivesse ocupando um lugar que ele deixara vazio sem perceber. Aquela intimidade, aquela naturalidade. Rodrigo se sentia um intruso em sua própria casa. “Cuidado, Capitã Lívia”, disse ele. Jana riu, fingindo perder o equilíbrio de propósito.
Lívia riu ainda mais alto. Foi o estalo final. “O que está acontecendo aqui?” A voz de Rodrigo cortou o ar como vidro quebrando. O efeito foi imediato. Jana se virou assustada. As solas dos tênis chiaram no mármore. O prato escorregou de sua mão e se estilhaçou no chão, o som da cerâmica ecoando como um tiro.
Livia enrijeceu sobre os ombros dela. O riso morreu no meio do peito, substituído por um suspiro agudo de medo. Quando vi meu pai parado na porta, o rosto duro, a pele escura e terna, silhuetado contra a luz do corredor, Livia encolheu-se instintivamente, agarrando o pescoço de Jana com muita força. Senhor.
“Azevedo”, gaguejou Jana, pálida. Rodrigo deu um passo à frente. A cozinha ainda cheirava a sabão e sol, mas o calor havia passado. Uma gota d’água escorreu do cotovelo de Jana e caiu lentamente sobre a bancada de granito, produzindo um pequeno som seco. Rodrigo olhou para aquilo, para a gota, para a filha presa no corpo de outra mulher, buscando compreender a cena para a qual não estava preparado.
Naquele silêncio recém-quebrado, algo invisível começou a rachar. O grito de Rodrigo ainda vibrava no ar quando tudo desabou. O prato estilhaçado no chão parecia ter quebrado algo maior do que cerâmica. Jana permaneceu imóvel por um segundo a mais, os olhos arregalados, as mãos ainda cobertas de espuma.
Lívia, lá em cima, nos ombros dela, ele prendeu a respiração como se tivesse aprendido naquele exato momento que a alegria também podia ser perigosa. “Desça agora”, ordenou Rodrigo, com a voz dura, cortante. Deu três passos para a frente. Os passos ecoaram na cozinha como frases. Jana obedeceu trêmula, com um cuidado exagerado, como quem carrega algo frágil demais para errar.
Abaixou o corpo lentamente, segurando as pernas da menina, protegendo-a do próprio medo. “Desculpe, senhor”, tentou explicar, mas as palavras saíram embargadas. Quando os pés de Lívia tocaram o chão frio, algo aconteceu. Ela não correu para o pai, não estendeu os bracinhos pedindo um colo, não buscou abrigo na figura que, teoricamente, deveria representar segurança.
Então ele se virou e agarrou as pernas. Jana, desesperada, enterrou o rosto no avental molhado. “Não!”, gritou Livia. “Não grite, papai é mau.” A palavra caiu como um soco. Rodrigo parou no meio do movimento. Com o braço ainda estendido, pronto para pegar a filha no colo, ficou suspenso no ar. Que feio.
A acusação, vinda de uma boca tão pequena, tinha o peso de uma verdade que ele não sabia como atingir. Lívia olhou para ele com medo, medo verdadeiro, e se agarrou àquela mulher, a diarista, como se ela fosse a única coisa firme em um mundo que estava prestes a desmoronar. O rosto de Rodrigo ardeu. A fúria inicial se dissipou em uma sensação mais fria e venenosa.
Humilhação, ciúme, um instinto primitivo de território violado. “Livia, venha cá”, disse ele, tentando suavizar a voz, sem sucesso. A menina balançou a cabeça com força, apertando o tecido simples do avental de Jana. Jana permaneceu rígida, com as mãos erguidas, sem ousar tocar a criança, mas também sem afastá-la.
Os olhos dela percorreram o corpo de Lívia para Rodrigo, como suplicantes, implorando por algo cujo nome desconheciam. “Senhor, por favor, ela vai se assustar ainda mais”, sussurrou Jana. “Foi um engano.” Rodrigo a encarou com raiva. “Não fale”, disse ele em voz baixa, aproximando-se até invadir seu espaço pessoal. “Nem mais uma palavra.” Ele se abaixou e, com um movimento firme demais para ser gentil e suave demais para ser violento, puxou Lívia dos braços de Jana.
A menina reagiu instantaneamente. Deu um grito alto, um grito histérico, chutando as perninhas no ar, estendendo os braços para trás. Jana, Jana, soluçava, com a voz embargada. Rodrigo sentiu o estômago revirar. A filha não chamava, chamava a outra. Apertou Lívia contra o peito, tentando conter o choro, tentando se convencer de que era apenas confusão.
A criança exagera. Crianças se apegam facilmente. Era o que ele sempre dizia para si mesmo. Tire essas luvas, limpe essa espuma, ordenou, olhando para Jana como se ela fosse um erro administrativo. E vá para o meu escritório agora. Jana assentiu, lágrimas silenciosas escorrendo pelo rosto. Ele tirou as luvas com dedos trêmulos, uma de cada vez, como se aquele gesto fosse uma despedida.
Lívia passou por ele sem olhar, porque se olhasse, saberia que não era ele. Rodrigo virou as costas e saiu da cozinha com a filha ainda chorando em seu ombro. Cada soluço parecia atingir o osso do peito. O escritório o recebeu com sua frieza habitual. Madeira escura, couro, vidro, um ar-condicionado que gelava a pele.
Jana estava no centro da sala, mãos juntas à frente do avental, cabeça baixa. Parecia menor ali dentro, como se o espaço tivesse sido feito para oprimir. Rodrigo estava de costas, olhando para o jardim impecavelmente aparado junto à janela. Pediu um uísque, embora fosse cedo demais. O gelo brilhava no copo, um som alto demais no silêncio.
“Você tem ideia de quanto eu pago pela segurança e educação da minha filha?”, perguntou ele sem se virar. Jana engoliu em seco. “Não, senhor. Uma fortuna.” Ele se virou lentamente. Psicólogos, especialistas, a melhor governanta da cidade. E mesmo assim, chego em casa e encontro a governanta colocando minha filha em risco com uma pia de mármore.
Ele apoiou as mãos na mesa, inclinando o corpo para a frente. “Dê-me um motivo para eu não mandar isso embora agora mesmo.” Jana se levantou, o rosto trêmulo, as pernas tremendo, o medo era real. Mas ao pensar em Lívia, algo se iluminou dentro dela. “Porque ela estava rindo”, disse ele. A frase saiu fraca, mas não se contraiu.
Em três semanas trabalhando aqui, senhor, continuou a voz, ganhando firmeza. Nunca tinha ouvido sua filha rir, nada, apenas silêncio. Rodrigo piscou, surpreso. Isso não lhe dá o direito de agir como um… Ele procurou… Em outras palavras, um irresponsável. Existem regras, protocolos, insistiu. Jana deu um passo à frente, quase esquecendo onde estava.
“Os protocolos não se curvam, senhor”, disse ele em voz baixa. “Não enxugam lágrimas.” Rodrigo sentiu algo se mover contra a sua vontade. “Cuidado com o tom”, advertiu. “Desculpe.” Jana baixou o olhar, mas hoje ela tinha vindo sozinha à cozinha. Estava procurando alguém. Pediu para subir. Disse que queria ver se a mãe estava no céu.
O mundo de Rodrigo se encolheu. Ele sentou-se pesadamente na cadeira, como se as palavras tivessem lhe roubado as forças. “Ela disse isso?”, perguntou a voz embargada. Ele respondeu: Jana assentiu, e quando ela não o fez, ele percebeu e chorou. “Brincamos de avião, então a dor não é tão grande.” Rodrigo passou a mão pelo rosto exausto. “Eu ia dizer algo, talvez até me desculpar, quando Jana acrescentou quase sem pensar: “Eu sei que a Sra.
Odet disse que o contato físico com Livia era proibido. Rodrigo ergueu a cabeça repentinamente. O quê? A regra? Jana explicou. As pessoas assinaram um papel. Nada de abraços, nada de pegar no colo. Disseram que era uma ordem divina. O silêncio tornou-se pesado. Rodrigo nunca havia dado tal ordem. Antes que pudesse responder, a porta do escritório se abriu sem bater.
Dona Odet entrou com passos firmes, postura impecável, o rosto tão controlado como sempre. “Sr. Azevedo, desculpe interromper”, disse em voz baixa. Mas a situação exigia intervenção. Consegui acalmar Lívia. Dei-lhe um leve sedativo. Rodrigo levantou-se lentamente. Repeti o sedativo. Minha filha estava rindo.
Odet encarou Jana com um desprezo calculado. Risos histéricos são estímulos em excesso, senhor, explicou ele. A garota se transformou completamente na rotina infantil. Ela se aproximou de Rodrigo, baixando a voz: “Já vi isso antes. Jovens assim entram nas casas de viúvos. Primeiro, conquistam a criança.”
Depois que Rodrigo olhou para Jana, a dúvida começou a se instalar. Jana sentiu o chão sumir debaixo dos seus pés. Rodrigo respirou fundo. “Chega”, disse ele. “Você ainda não está demitida. Mas vai ficar longe da minha filha, entendeu?” Jana prendeu a respiração. “Sim, senhor”, respondeu ela, aliviada e arrasada ao mesmo tempo. Quando Jana saiu, Rodrigo ficou sozinho.
Ele abriu o sistema de segurança do computador. As telas se iluminaram uma a uma, banhando o escritório com uma luz azulada. Na tela, a cozinha congelada. O momento em que Lívia ria nos ombros de Jana. Rodrigo congelou a imagem e, pela primeira vez, não viu perigo, viu vida. Sem dúvida, agora era sobre Jana, era sobre ele.
Durante três dias, o escritório de Rodrigo se transformou em um bunker, as cortinas sempre fechadas, a luz azul das telas iluminando um rosto que mal dormia. O mundo exterior, as reuniões, os mercados, os contratos, tudo havia encolhido até caber dentro de um conjunto de monitores. Ele assistia, assistia, rebobinava o vídeo, detinha-se nos detalhes.
Na tela da sala de jantar, Lívia estava sentada na cabeceira de uma mesa grande demais para seu pequeno corpo. As pernas balançavam sem tocar o chão. Dona Aldete permanecia de pé, rígida, como uma sargento invisível. Costas retas, mastigue 20 vezes. Um, dois. A voz metálica ecoava pelo alto-falante. Lívia obedeceu, não chorou, não sorriu.
Ele mastigava com o olhar vazio, fixo em algo que não existia. Quando o garfo escorregou de seus dedos e caiu com um tilintar tímido, Odet retirou o prato. “Se você não comer como uma dama, não haverá sobremesa. Retire-se.” Rodrigo cerrou os punhos até os nós dos dedos ficarem brancos. Ele tem três anos, pensou ele mesmo.
Na tela seguinte, o corredor de serviço. Jana limpava o chão de mármore, com a cabeça levemente inclinada, cantarolando baixinho. Não havia pressa, não havia tensão, apenas presença. A porta da sala de jogos se abre. Livia aparece. Ela para a 2 metros de Jana, com as mãos atrás do corpo, como se alguém estivesse lembrando uma regra. Jana levanta o olhar. Ela apenas sorri. Um sorriso pequeno. Cúmplice.
Ele fez um gesto bobo com o dedo no nariz, imitando um bigode. Piscou um olho. Lívia levou a mão à boca para conter o riso e saiu correndo, leve, como se tivesse recarregado as energias por um segundo. Rodrigo desligou o som. Sentiu algo apertar sua garganta. Naquela noite, ele tomou uma decisão. Esperava passar a festa da Fundação Azevedo, o evento mais importante do ano, e depois dispensaria a Sra.
Odet, sem escândalos, sem imprensa, sem alarde. Era um plano limpo e controlado, mas ele se esqueceu de um detalhe essencial. Odet também observou. Percebeu a mudança no olhar de Rodrigo, a maneira como ele demorava mais em frente a certas telas, como seu rosto endurecia não contra Jana, mas contra ela. Odet não era uma mulher que perdia o controle e, quando sentia que o estava perdendo, atacava.
A noite da festa chegou com uma tempestade. Raios cruzaram o céu de São Paulo, refletindo nas grandes janelas da mansão. Lá dentro, tudo era brilho. Lustres de cristal, champanhe gelado, um quarteto de piano e cordas preenchiam o salão com uma elegância calculada. Vinte dos convidados mais importantes de Rodrigo circulavam com taças nas mãos.
Prefeito, empresários, gente acostumada a sorrir enquanto avaliava tudo. Rodrigo cumprimentava a todos com a armadura da sociedade bem ajustada, mas por dentro eu estava em outro lugar. Pensava em Lívia, que dormia lá em cima. Pensava em Jana, confinada à cozinha e ao vestiário, longe da sala de estar.
Jana vestia seu uniforme mais impecável, passado a ferro discretamente como sempre. Cabeça baixa, movimentos precisos, invisível. Lá em cima, a Sra. Odet executava seu plano. Entrou no quarto como quem entra num templo. Caminhou até o criado-mudo e o abriu. A pequena caixa de veludo azul. Lá estava o anel de Ana. A pedra azul rodeada de diamantes captou um relâmpago distante, brilhando como um olho aberto.
Odet colocou as luvas, pegou o anel, fechou a caixa vazia, desceu as escadas de serviço, passou pelo corredor dos funcionários, agora vazio, encontrou a mochila simples de Jana encostada em um assento, abriu o bolso lateral, deixou o anel cair entre moedas e um batom gasto. “Se você não sair pela porta”, murmurou ele, “saia pela lama.”
Meia hora depois, o piano silenciou. Dona Odet apareceu no arco do salão, vestida de preto, com o rosto expressando perfeita preocupação. O Sr. Azevedo ordenou que os motoristas interrompessem as conversas. “Sinto muito, mas aconteceu algo sério.” Rodrigo sentiu o corpo esfriar. O que havia acontecido? O anel de Dona Ana desapareceu. O salão prendeu a respiração.
Xícaras foram colocadas sobre as mesas. Rodrigo sentiu o chão sumir debaixo dos seus pés. “Tem certeza?”, perguntou a voz, sumindo no ar. “Absoluta.” Odet hesitou, olhando para o chão. “E eu acho que sei quem era.” “Quem?” O nome saiu como um rosnado. A garota nova, Janaína. O nome caiu como uma lâmina. Rodrigo sentiu algo se quebrar dentro dele.
Jana, a mulher que fazia sua filha sorrir. A mulher que ele começou a ver se defender em silêncio. Tragam-na aqui agora. Dois seguranças levaram Jana até a cozinha. Ela apareceu no meio da sala, segurando a mochila contra o peito como um escudo, os olhos cheios de pânico. “Eu não fiz nada, senhor”, ela gritou, procurando Rodrigo com os olhos.
Mas ele já não a olhava com dúvida. Olhava com dor. “Revistem a bolsa.” Um dos seguranças abriu o zíper. Primeiro compartimento, nada. O segundo? Um brilho azul surgiu sob as luzes do lustre. Um murmúrio percorreu o corredor. “Ladrão!” Alguém sussurrou. Jana caiu de joelhos. “Isto não é meu. Alguém o colocou aí.” Ela chorou.
Rodrigo pegou o anel com a mão trêmula. Apertou com tanta força que doeu. Tudo o que eu tinha visto nas câmeras se desfez diante daquele objeto ali, pesado, indiscutível. “Você me enganou”, disse ele em voz baixa. “Você, minha filha, usou a minha dor. Não.” Jana agarrou a barra do terno dele. “É uma armadilha.” Rodrigo se afastou como se estivesse em chamas.
Tire isso daqui agora. A chuva invadiu o salão quando o portão se abriu. Jana foi atirada contra os degraus de pedra. A mochila caiu para o lado. O portão se fechou com um baque seco. Rodrigo guardou o anel no bolso. Sentia-se vazio. Eu te avisei! Odet murmurou, colocando a mão no ombro dele. Mas alguém tinha visto tudo.
Não. No topo da escada, de pijama, Lívia parou. Ela tremia, com os olhos arregalados. “Mamãe!”, gritou. O som cortou o corredor. Rodrigo levantou a cabeça tarde demais. Lívia desceu correndo as escadas, batendo no peito do pai com os punhos cerrados. “Você expulsou minha mãe de casa!”, chorou. “Você é malvado!”
Odet tentou puxá-la. Lívia mordeu sua mão. Jana, volta!, gritou a criança, olhando para a porta fechada enquanto a chuva caía lá fora. Rodrigo permaneceu imóvel. O salão, antes repleto de luxo, parecia um tribunal silencioso. Sem bolso, o anel azul pesava como uma sentença.
E pela primeira vez, Rodrigo teve medo de ter condenado a pessoa injustamente. E junto com isso, havia algo muito mais precioso. O silêncio que tomou conta da mansão após a festa não era descanso, era febre. Na manhã seguinte, Rodrigo desceu as escadas esperando o ruído habitual de passos contidos, o som dos talheres, algum cheiro seco ecoando pelos corredores. Não havia nada.
A cadeira vazia de Lívia, o copo de leite intacto, o relógio marcava 8h15. “Onde ela está?”, perguntou ele. Dona Odet, respondeu ela sem levantar os olhos da bandeja. A mão mordida estava enfaixada com precisão cirúrgica. Recusava-se a sair da cama, dizendo: “Já passou da hora”. Rodrigo subiu os degraus de dois em dois, bateu na porta do quarto. Não houve resposta.
Entramos. O quarto estava escuro, as cortinas fechadas, o ar pesado. Livia I estava encolhida sob o edredom, um pequeno monte imóvel. Rodrigo sentou-se na beirada da cama com cuidado, como se o colchão pudesse quebrar. Princesa! Ele sussurrou. Lentamente, puxou o edredom para trás. O rosto da filha parecia pálido demais, os olhos arregalados, fixos na parede. Não piscavam, não ouviam.
Rodrigo tentou sorrir, trouxe panquecas. A bandeja tremia em suas mãos. Ele levou um pedaço à boca da menina. Lívia fechou os lábios com força, virou o rosto um centímetro, como se fosse um esforço imenso. Vinte minutos depois, Rodrigo saiu da sala com a bandeja intacta. O dia passou sem um som.
À tarde, nada mudou. À noite, menos ainda. Livia não chorou, não gritou, não perguntou nada, ele simplesmente desapareceu. No segundo dia, Rodrigo ouviu a voz de Odet no quarto. “Se você não comer, vamos usar uma sonda”, disse ele impacientemente. “Pare com isso.” Um prato caiu. Rodrigo entrou sem bater.
“O que você está fazendo?”, rosnou ele, tentando instruí-la. Odet limpou uma mancha do uniforme dele. “É, um desafio à autoridade. Rodrigo sentiu algo subir pela garganta, uma fúria diferente, protetora. Se você tocar nisso de novo, eu te destruo”, disse ele baixinho. Ele ligou para o pediatra naquele mesmo instante. Ó, doutor.
Augusto Nogueira examinou Lívia em silêncio. Escutou, observou, esperou. Saiu com Rodrigo para o corredor. “Não é vírus”, disse ele. “É desistência”. Rodrigo balançou a cabeça incrédulo. “Ela tem 3 anos. Crianças também se quebram”, respondeu o médico, “quando perdem o que as ancora”. A palavra ficou suspensa no ar. Âncora.
Se ela não reagir nas próximas 24 horas, teremos que internar. Continuou. A alimentação forçada cuida do corpo, não da vontade. Naquela manhã, Rodrigo sentou-se no chão do quarto da filha, de costas para a porta, com a mão no peito dela, contando suas respirações frágeis. Chorava em silêncio. “Fiz isso por você”, murmurou.
“Para te proteger”, as palavras soavam falsas. Rodrigo desceu até o escritório, onde lhe serviram um uísque que o consumiu como castigo. Olhou para a parede de monitores apagados. A dúvida que ele havia evitado agora gritava: “Por quê?” “Porque alguém que quisesse roubar perderia tempo fazendo um avião com uma criança quando ninguém estivesse olhando. Por que alguém faria um trabalho de pedreiro com piso molhado? Por que eu arriscaria meu emprego por um abraço proibido?” Ele ligou o sistema.
Horas se passaram. Ele viu tudo. Jana dobrando cuidadosamente as roupas pequenas. Jana se abaixando para ficar na altura de Lívia. Jana deixando cair uma bandeja para alcançar até a menina que havia caído no jardim. Odet olhando para o relógio. Então ele encontrou. Câmera no corredor superior. Noite de festa. Odet saindo do quarto principal. Algo brilhando na mão.
O zíper da mochila de Jana. O anel caindo. O grito. O que Rodrigo soltou foi animalesco. Ele correu, arrombou a porta do quarto de Odet, arrastou-a pelos corredores até o escritório. Mostrou a tela, a verdade congelada em alta definição. Odet tentou falar, depois atacou, chamou Jana de lixo, disse que fez aquilo pelo bem da família.
“Você roubou minha filha”, disse Rodrigo, “e quase a matou. É um adeus”, acrescentou, “calma demais para ser humana e você vai pagar por isso”. Odet saiu desesperada. Foi quando o som veio de cima, um baque seco, Lívia. Rodrigo subiu as escadas correndo. Encontrou a filha no chão, perto da janela, inerte, com muito calor e muito frio.
O mundo encolheu até caber no número de um degrau, às pressas. “Minha filha não está respirando direito!”, gritou ao telefone. A ambulância levou tudo: tempo, ar, orgulho. Na UTI, o monitor mostrava um ritmo muito lento. O médico foi direto: “Estamos perdendo a respiração”. “Do que ela precisa?”, perguntou Rodrigo, sem voz. O médico não hesitou.
Rodrigo sabia o que havia perdido. Dirigia como nunca. A cidade mudava sob o para-brisa. O vidro se transformava em concreto, a luz em sombra. Parou em frente a um prédio descascado, subiu uma escada estreita e bateu numa porta de madeira empenada. Uma senhora idosa a abriu e o encarou com puro ódio. “Vá embora.”
Rodrigo caiu de joelhos no corredor sujo. “Minha filha está morrendo.” A palavra abriu caminho. Jana apareceu atrás da mãe, os olhos inchados, o corpo exausto. Ao ouvir Lívia, endireitou-se como se alguém a tivesse chamado pelo nome. “Onde ela está?” “No hospital.” Jana entrou na UTI sem pedir permissão, aproximou-se da cama e pegou a mão de Lívia. “Sou eu”, disse baixinho.
“Estou aqui”, cantava. O monitor respondeu. O ritmo aumentou, o ar voltou. Lívia abriu os olhos, tocou o rosto de Jana. “Jana”, sussurrou. Rodrigo chorou à porta, ninguém entrou. “Eu não precisava.” Dias depois, Jana voltou à mansão pela porta da frente. Rodrigo queimou o uniforme, mudou de horário, aprendeu a ficar.
Na cozinha, meses depois, havia cheiro de baunilha, farinha no chão, risos. Lívia atravessou o espaço, soltando as duas mãos. Rodrigo olhou para a cena simples, imperfeita, viva e compreendeu: “Tarde, mas inteira.” O antídoto sempre tinha um nome.





