Não toque nesse berço. A voz de Miguel Andrade cortou o ar como vidro quebrando, baixa e rouca, cheia de um desespero que não pedia permissão, apenas ordenava. Por um segundo, apenas um segundo, tudo pareceu congelar. Depois veio a risada, uma risada curta e seca, masculina, o tipo de risada que não pede desculpas por existir.
A mansão estava vazia de móveis e cheia de homens, homens de terno escuro, sapatos caros rangendo no mármore polido, mãos empacotando apressadamente quadros, enrolando tapetes, arrancando a casa pela raiz, como alguém que desmonta um cenário após a última cena. O sol da manhã entrava pelas janelas altas, mas a luz era fria, sem calor.
Ele bateu nas janelas, que se refletiam no aço das caixas, gotejando. Por causa das paredes brancas, nada esquentava. Miguel tentou avançar com as rodinhas da cadeira, empurrou os aros com força, os braços tremendo, as rodas giraram e deslizaram sobre o tapete persa que um funcionário havia dobrado descuidadamente. Era um tapete que ele comprara em Istambul anos atrás.

Lembrei-me do cheiro da loja, do chá forte, do orgulho de poder escolher. Agora só havia um obstáculo. A garganta de Miguel ardia. Não era dor física, era algo pior. Desde o acidente, dois anos antes, ele aprendera a conviver com a ausência das pernas, com o silêncio do próprio corpo, mas nunca, nunca se sentira tão inútil como naquele momento.
Não foi a paralisia que o matou, mas sim a incapacidade de proteger o próprio filho. “O show acabou, Miguel”, disse uma voz calma e metálica, vinda da porta principal. Miguel ergueu os olhos. Octavio Cunha, ex-sócio, amigo de longa data, presentes caros, promessas sussurradas em salas de reunião com vista para a cidade.
Agora estava lá, impecável, segurando um envelope pardo entre os dedos, como se fosse algo sujo. O cheiro de café fresco, que costumava dominar a casa pela manhã, havia desaparecido. Havia poeira, papelão, suor e um leve odor de produto de limpeza barato. “Você tem 10 minutos para recolher seus pertences pessoais”, continuou Otávio, checando o relógio de pulso.
Roupas, remédios, nada mais. Miguel pressionou os braços da cadeira contra os dedos, que ficaram brancos. “Eu não assinei nada”, disse ele com a voz embargada, porém mais firme. “Você falsificou minha assinatura enquanto eu estava na sala de cirurgia.” Otávio suspirou entediado e fez um gesto discreto com a mão. Dois seguranças se aproximaram.
“Retirem o Sr. Andrade. Se houver resistência, chamem a polícia. Invasão de propriedade.” Foi nesse exato momento, quando mãos grandes agarraram a parte de trás da cadeira de rodas, que o grito ecoou. Agudo, assustado, pequeno demais para aquele caos, o choro de um bebê. Os movimentos cessaram reflexivamente. Do corredor lateral surgiu Lúcia.
Ela correu. Ele tinha Tomás pressionado contra o peito, envolto num cobertor azul-claro. O uniforme de empregada estava impecável, como sempre, mas o rosto, o rosto estava pálido, os olhos escuros e arregalados, atento a tudo. Ela o colocou entre Miguel e os seguranças. Ele não pensou, não calculou, apenas ficou parado.
“Ele não consegue se defender”, disse ele com uma firmeza que surpreendeu até a ela mesma. “Ele não consegue se defender. Você não tem vergonha?” Os homens hesitaram, não por medo, mas por algo mais incômodo, constrangimento. Lúcia não gritou, não implorou. Ela sustentou o olhar, como um bebê chorando, e isso, de alguma forma, a expôs. Miguel olhou para ela.
Naquele caos de vozes, passos e ordens, algo se acalmou dentro dele. Viu os olhos de Lúcia, castanhos, determinados. Viu as mãos dela protegendo o filho dele com o próprio corpo? Ela não era da família, eu não tinha nenhuma obrigação com ela. Houve dois meses em que ele mal conseguiu pagar o salário integral. Mesmo assim, lá estava ela, firme, presente.
“Lucia”, murmurou ele, “leve-o, Tomás, vá embora. Não precisa passar por isso.” Ela se virou para ele, e ele se ajoelhou ao lado da cadeira. Com uma das mãos, ela embalava o bebê. Com a outra, ele segurava a mãozinha de Miguel, pequena, quente, real. “Minha família está aqui, Senhor”, disse ele em voz baixa. “E ele não será separado do pai.”
Otávio bateu palmas impacientemente. Que cena comovente, a empregada e o inválido. “Tirem os três daqui.” Os seguranças obedeceram. Empurraram a cadeira de rodas de Miguel em direção à porta, não com violência exagerada, mas com uma indiferença que dói mais. O corredor parecia mais longo do que nunca.
Miguel viu o retrato da esposa sendo retirado da parede. Viu mãos estranhas tocando os talheres. Cada passo era uma ferida aberta. Na porta principal, houve um último empurrão. A cadeira desceu um pequeno degrau com um impacto seco. Um choque percorreu a espinha de Miguel como eletricidade. Lúcia soltou um grito abafado e correu para segurar a cadeira antes que ela caísse.
“E não volte!” gritou Otávio de dentro. A porta de madeira maciça se fechou. Clack, o som foi definitivo. A tranca girou. Silêncio. Miguel ficou olhando para a porta da própria casa. O sol da manhã batia em seu rosto, mas ele sentia frio. Um frio que vinha de dentro. Estava na rua, sem carteira, sem celular, sem chaves.
Eu só tinha a cadeira de rodas. E a mulher ao lado dele, ofegante, com um bebê nos braços. Oh, o vento soprava. Tomás chorou de novo. Miguel baixou a cabeça. Lúcia ajeitou a manta do bebê, colocou uma pequena bolsa no ombro e se posicionou atrás da cadeira. Suas mãos, pequenas e calejadas, seguravam as alavancas com firmeza.
À frente deles, estendia-se o caminho da entrada da mansão, elegante e cruel, cascalho branco, pedras soltas, feito para carros de luxo, não para alguém como Miguel. Ela empurrou as rodas, avançou e travou. Miguel fechou os olhos por um instante. A casa atrás deles já não protegia ninguém e, à frente, o mundo não fora feito para esperá-los.
O caminho parecia curto visto da janela da mansão. Uma curva suave, algumas árvores bem cuidadas, o portão de ferro ao fundo, bonito, limpo, silencioso. Na prática, era um campo minado. O cascalho branco rangia sob as rodas finas da cadeira de rodas Miguel. Cada pedrinha solta se tornava uma inimiga.
O som seco, estalo, estalo, estalo, ecoou alto demais naquele silêncio constrangedor, como se anunciasse ao mundo que ele não pertencia mais àquele lugar. Lucia empurrou com cuidado. O corpo levemente inclinado para a frente, o bebê aconchegado ao peito. A respiração já estava mais curta do que deveria. As rodas travaram. Miguel fechou os olhos por um instante, respirou fundo.
O ar estava pesado demais para respirar. Droga! Ele murmurou, batendo com força nos braços da cadeira. Nem mesmo sair da minha própria casa comigo. A frase ficou pairando no ar. Não era raiva direcionada a Lucia. Era algo mais feio. Vergonha. Uma vergonha antiga, profunda, que ele pensava ter aprendido a controlar desde a infância. Acidente.
Lucia não respondeu imediatamente. Ele ajeitou o cobertor de Tomás, certificou-se de que o bebê estava seguro e então soltou as alavancas da cadeira. “Vou inclinar um pouco, senhor”, disse ele, ofegante. “Confie em mim.” Ela se agachou, segurou a estrutura metálica por baixo e levantou as rodas dianteiras. O peso de um homem adulto, a instabilidade do terreno, o bebê preso ao corpo, tudo ao mesmo tempo.
A brita deslizou sob uma fina camada de Lucia. Ela deu um passo à frente, perdeu o equilíbrio, recuperou-se. O som da própria respiração tornou-se alto, forçado, humano. Miguel sentiu o rosto queimar. Não pelo esforço, mas pela humilhação. Levou quase 20 minutos para percorrer aqueles poucos metros até o asfalto. 20 minutos de silêncio quebrados apenas pelo choro grave de Tomás e pelo som áspero das pedras.
Quando finalmente chegaram à rua, Lúcia soltou cuidadosamente a cadeira e se apoiou nos joelhos, tentando recuperar o fôlego. O cabelo grudava na testa. O uniforme, antes impecável, agora estava manchado de poeira. Pronto, disse ela, forçando um pequeno sorriso. Conseguimos. Miguel não olhou para trás. Não queria ver a mansão.
Eu não queria encarar aquilo como algo que ele tivesse perdido. Preferia fingir que nunca lhe pertenceu. A rua era larga, elegante demais para pedestres. Sem pontos de ônibus, sem sombras acolhedoras, apenas paredes ruidosas e silenciosas. Um carro esportivo prateado surgiu à distância. Miguel reconheceu o rugido do motor mesmo antes de vê-lo de perto. “É o Jorge”, disse ele.
Com um fio de esperança na voz, ele disse: “Ele é o padrinho do Tomás.” Lucia endireitou-se e acenou. O carro diminuiu a velocidade. Por um instante, Miguel já ensaiava um sorriso. “Pensei nas palavras certas. Foi tudo um mal-entendido. É só porque hoje…” O vidro escuro não baixou. O carro parou por um momento.
Miguel viu a silhueta do motorista virar a cabeça, olhar, avaliar. Miguel, a cadeira. Lucia, o bebê. Houve uma pausa, um espaço mínimo onde a humanidade poderia ter entrado. Então o motor rugiu. O carro ligou, levantando poeira e pequenas pedras que atingiram as pernas e os pertences de Miguel. O vento do escapamento trazia um cheiro ácido de combustível.
Eles não viram, disse Miguel, tentando se convencer. Lúcia baixou o braço lentamente. Você viu? Sim, senhor, respondeu ele. A voz era diferente, mas firme. Você viu? Perfeitamente. O céu começou a se fechar. Nuvens carregadas, cinza-escuras, se acumularam rapidamente. Impossíveis de ignorar. O primeiro trovão soou à distância.
“Você precisa ir embora”, disse Miguel, virando a cadeira para encará-la. “Não temos dinheiro, não temos onde ficar. Isso vai piorar.” Lucia cruzou os braços. Um gesto simples, mas definitivo. “Se você chamar a polícia agora, eles vão tirar o Tomás de você”, disse ela sem rodeios. “Um pai na rua não é considerado capaz.”
E o Dr. Otávio vai garantir que isso aconteça. Miguel engoliu em seco. Você sabia que ela estava certa? Estou morta-viva, Lucia, disse ela, apontando para as próprias pernas. Não consigo nem andar na rua. Você vai afundar comigo. Ela respirou fundo, pela primeira vez desde que saiu da mansão. Seus olhos se encheram de lágrimas.
“O Senhor… Trabalhei quando ninguém me contratou”, disse ela. Estava grávida sozinha. Você pagou o funeral da minha filha sem pedir nada em troca. Miguel sentiu o golpe no peito. Senhor, não é um fardo. É um bom homem em um dia ruim e eu não abandono pessoas boas. Começou a chover. Gotas grandes e grossas, frias, atingiam o asfalto como rachaduras.
Tomás chorava desconfortavelmente. “Conheço um lugar”, disse Lúcia, já empurrando a cadeira. “Não é lindo?” Eles não fizeram perguntas. “É um motel de beira de estrada.” Miguel fechou os olhos. Não protestou. A descida para a cidade era um novo tipo de tortura. A chuva batia forte. Lúcia tirou o casaco fino e cobriu o bebê, deixando apenas a blusa do uniforme colada ao corpo.
Os carros passavam rapidamente, jogando água suja uns nos outros. Ninguém parava. As mansões ficaram para trás. Depois, os prédios comerciais. Em seguida, os armazéns fechados. O cheiro mudou. Gasolina, lixo molhado, comida frita. A placa de neon piscava com letras faltando. Motel Laruta.
Dentro do quarto, o ar estava pesado. Umidade, cheiro de cigarro velho, desinfetante barato. A cama era pequena demais, a lâmpada fraca, as paredes de um verde desbotado. Miguel sentou-se imóvel, observando Lúcia improvisar um ninho para Tomás com toalhas velhas. O bebê adormeceu quase instantaneamente. “O que vamos fazer amanhã?”, perguntou ele em voz baixa.
Lúcia se virou, cansada e molhada, mas com um olhar firme. “Amanhã veremos”, respondeu. “Hoje ele dorme sob um teto e isso basta.” Na manhã seguinte, o choro de Tomás era diferente. Fome. Lúcia chacoalhou a lata de leite. O som era oco. Um pouco de pó caiu na mamadeira. Miguel desviou o olhar. O telefone do quarto parecia zombar dele.
Mais tarde, enquanto tentava distrair o bebê com sombras na parede, Lúcia saiu por alguns minutos. Disse que ia tentar ajudar na esquina. Quando voltou, trouxe sacolas, leite, fraldas e café quente. Miguel sentiu alívio antes de entender o preço. Enquanto ela alimentava Tomás, ele notou o lóbulo da orelha esquerda, o pequeno furo vazio, sem brilho, sem ouro.
Miguel, eu conhecia aqueles brincos. Lucia nunca os tirava. Ela sentiu o olhar dele e levou a mão aos cabelos, cobrindo a orelha, rápido demais. “O café está bom?”, perguntou ele, fingindo naturalidade. Miguel segurou o copo com força. O calor queimava, mas ele não o soltou, não disse nada, mas naquele instante algo dentro dele se moveu.
Ele havia perdido a casa, o dinheiro, o nome, mas alguém simplesmente vendeu o passado para comprar o futuro do filho. E Michael entendeu tarde demais quem realmente era quando tudo acabou. Ao amanhecer, sem pedir permissão, entrou no quarto do motel em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo zumbido distante do letreiro de neon do lado de fora. Rosa, escuro, rosa de novo.
Cada piscada desenhava sombras diferentes nas paredes manchadas. Miguel estava acordado havia horas. O colchão era macio demais, afundava no meio. E para alguém que não conseguia sentir metade do próprio corpo, isso era um risco. Mas ele não reclamava. O desconforto físico era pequeno comparado à opressão no peito. Sem chão, dentro de um ninho improvisado com toalhas dobradas, Tomás respirava rápido demais.
Um som fraco, um chiado curto, quase um chiado preso no peito. Miguel percebeu antes de ouvir o choro. Lucia chamou baixinho. Ela já estava ajoelhada ao lado do bebê, a mãozinha repousando no peito pequeno, os olhos atentos. Seu corpo se movia com uma urgência contida, como alguém que sabe que cada segundo conta. “Está queimando”, sussurrou ele.
E ele não está respirando direito. Miguel tocou a testa do filho. O calor era assustador, pele seca e vermelha, olhos semicerrados, perdido, um frio mortal descendo pela espinha. “Hospital”, disse ele sem hesitar. Agora Lucia não perguntou como, apenas agiu. Enrolou Tomás no cobertor, colou o corpinho do bebê junto ao seu para compartilhar o calor, calçou os sapatos sem cadarço e abriu a porta.
A rua estava úmida. O cheiro de chuva velha ainda pairava no ar. Os postes de luz desenhavam poças irregulares no asfalto rachado. Miguel se transferiu para a cadeira com uma agilidade que não vinha do treino, mas do desespero. Os braços doíam, as mãos tremiam, mas não importava. “O hospital fica a dez quarteirões daqui”, disse Lúcia, já correndo.
Miguel vinha atrás, empurrando as rodas com força. Cada impulso provocava um gemido do corpo cansado. O som da respiração ofegante de Tomás guiava seus movimentos como um metrônomo cruel. “Aguenta firme, filho”, murmurou ele. “Papai está aqui.” A calçada se estreitava. Raízes antigas de árvores quebravam o concreto em ângulos traiçoeiros. Lúcia saltava sobre os buracos, firme e concentrada.
Miguel percebeu a diferença tarde demais. A roda dianteira direita caiu num buraco profundo. Houve um estalo metálico, seco, definitivo. A cadeira parou de repente. O corpo de Miguel foi projetado para a frente. Ele tentou se apoiar com as mãos, mas escorregou. O impacto contra o asfalto molhado tirou o ar dos seus pulmões. O gosto de sangue encheu sua boca.
Ele ficou ali deitado de bruços, com as pernas imóveis dobradas num ângulo errado atrás de você. “Senhor!”, gritou Lúcia, parando abruptamente. Ela se virou e viu Miguel no chão, a cadeira tombada de lado, uma rodinha pendurada por um único parafuso girando sem força. O bebê gemeu, um som fraco e desesperado. “Não”, disse Miguel, cuspindo sangue e água da chuva. “Não volte, corra.”
Lúcia hesitou. O mundo parecia suspenso entre duas escolhas impossíveis. “Leve Tomás”, insistiu ele, arrastando-se com os cotovelos para longe dela, como se isso pudesse obrigá-la a ir. “Se você ficar, ele morre.” Os olhos de Lúcia se encheram de lágrimas, mas o corpo já havia decidido. “Eu volto”, prometeu ele. “Eu juro.”
Ela se virou e correu. Miguel ficou sozinho. Uma chuva caiu novamente, fraca a princípio, misturando-se com o sangue que escorria de sua testa. Ele socou o chão mais uma vez, de novo, de novo, até a pele se abrir. Nenhum carro parou. Um carro passou devagar. O feixe de luz o iluminou por um segundo, um homem deitado, sujo, em uma rua ruim, e seguiu em frente.
Vinte minutos depois, passos apressados ecoaram pela calçada. Duas enfermeiras empurravam uma maca. Lúcia estava na frente, o rosto tomado por uma expressão de pura urgência. “Aqui!”, gritou ela. Quando colocaram Miguel na maca, ele segurou a mão de Lúcia com força, desesperado. Tomás perguntou, com a voz embargada: “Está com os médicos?”. Ela respondeu, levando a mão suja ao rosto.
Chegamos a tempo. Ele desmaiou antes de entrar na sala de emergência. O hospital público cheirava a desinfetante barato e cansaço humano. Luzes fluorescentes piscavam, crianças choravam, adultos fofocavam. Ninguém dormiu bem. Miguel acordou em uma cadeira de rodas velha e emprestada, com o vinil rachado, o encosto de cabeça entupido e as mãos limpas às pressas.
Lúcia dormia sentada ao lado dele, com a cabeça apoiada em seu ombro, exausta. O médico explicou rapidamente: “Bronquiolite, agravada pelo frio e pela umidade, mais algumas horas e seria grave”, disse ele. Miguel fechou os olhos. Algumas horas depois, familiares de Tomás Andrade chamaram uma enfermeira. Miguel tentou se mexer, mas Lúcia acordou antes, já de pé.
As portas automáticas da entrada se abriram com um sibilo. Três seguranças entraram, afastando as pessoas com gestos secos. Atrás deles, Otávio Cunha caminhava com a tranquilidade de quem nunca precisou pedir nada. Usava um casaco caro, o nariz levemente franzido, como se o cheiro do hospital o incomodasse.
“Miguel”, disse ele, sorrindo. “Você se adapta ao ambiente?” Miguel sentiu o sangue ferver. “O que você quer?”, perguntou. Otávio ignorou. Olhou para Lúcia, avaliando-a como quem escolhe um objeto. Tirou um envelope grosso do bolso interno do casaco. “50.000”, disse, pesando o envelope na mão.
Em dinheiro vivo, sem perguntas. Ele estendeu o envelope para Lúcia. Assine a guarda provisória do bebê. Vá embora. Recomece sua vida. Não se enterre com um homem acabado. O silêncio ao redor tornou-se pesado. Miguel queria falar. Queria dizer a ela para aceitar o dinheiro, para se salvar, mas a voz não saiu. Lúcia deu um passo à frente e pegou o envelope. Otávio sorriu vitorioso.
Então Lúcia abriu o envelope, viu os pacotes verdes e respirou fundo. “Você tem razão”, disse Clara, com a voz ecoando pela sala. “Dinheiro compra muita coisa.” Otávio sentiu-se satisfeito. “Compra conforto”, continuou ela. “Compra silêncio, compra pessoas” e, num movimento rápido, jogou o envelope contra o rosto de Otávio.
As notas estavam espalhadas pelo chão do hospital como folhas secas. “Mas isso não compra dignidade”, disse ele, apontando para si mesmo. “E muito menos o direito de decidir quem é família.” Um murmúrio percorreu a sala. As pessoas se levantaram. Um homem com o braço engessado estava ao lado de Miguel. Uma senhora idosa estava em frente a Lucia. Ninguém tocou no dinheiro.
Octavio recuou, atônito, com o rosto vermelho de raiva. “Você vai se arrepender”, sibilou antes de se virar e sair. Miguel olhou para o chão coberto de contas. Depois olhou para Lucia. Algo dentro dele se reorganizou. Aquilo não era mais apenas uma luta pela sobrevivência, era uma guerra.
E pela primeira vez desde que tudo desmoronou, Miguel não se sentiu pequeno. Os bilhetes permaneceram no chão do hospital, como se fossem folhas verdes caídas de uma árvore doente. Ninguém se abaixou para pegá-los, não por honestidade, mas porque por alguns segundos aquele lugar, o corredor sujo, as cadeiras de plástico, o cheiro de água sanitária e desespero transformaram tudo.
E Lúcia estava farta de condenar um homem com a própria voz. Miguel olhou para ela. A adrenalina ainda pulsava em seu corpo, como um motor ligado no limite. O peito subia e descia rapidamente. Os olhos castanhos brilhavam, mas não era medo, era fogo. Um fogo que não vinha da raiva, mas do amor e da escolha.
Ele sentiu algo duro se formar dentro dela. Não era uma esperança tola, era uma decisão. “Lucia”, disse ele baixinho, puxando o ar como se doesse. “Aceite o dinheiro.” Ela virou o rosto, chocada. “O quê?” Miguel manteve o olhar firme, mesmo com a bandagem na testa, mesmo com as mãos ásperas. “Não é suborno”, disse ele, agora mais calmo. “É uma doação involuntária.”
Ele jogou no chão. Agora é nosso. Lúcia hesitou. Ela ainda sentia o nojo daquele envelope, o gosto da humilhação que Otávio queria lhe impor. Mas Miguel não estava pedindo por ganância, era outra coisa. Ela entendeu pelo jeito que ele disse: “Nossa, pegou o pacote mais próximo, depois outro.”
Um senhor de muletas, que já tinha visto tudo, também se agachou e ajudou. Uma moça com uma criança no colo recolhia as notas com cuidado, como se estivesse juntando munição para alguém que finalmente decidisse lutar. Em minutos, o dinheiro estava em um saco plástico amarrado a um nó. Miguel não sorriu, apenas respirou fundo.
E naquele corredor do hospital, pela primeira vez desde o acidente, ele se sentiu de pé. Uma hora depois, a cidade estava diferente. A noite havia retornado. Chovia e os faróis riscavam o asfalto como lâminas. Eles estavam dentro de uma velha van comprada às pressas de um cara que não fazia perguntas.
O motor vibrava e o volante cheirava a borracha gasta. Tomás dormia em segurança na casa de uma enfermeira que Lúcia conhecera no plantão. Dona Marta, uma mulher de voz firme e olhar penetrante, do tipo que te observa e decide silenciosamente se você é lixo ou gente. Ela olhou para Lúcia e decidiu: Volte antes do amanhecer.
Tudo o que diziam, embalava o bebê como se fosse seu. Agora, no banco do passageiro, Lúcia contava o dinheiro com dedos firmes, mas o braço ainda doía. O corte no antebraço estava coberto com gás improvisado. Mesmo assim, ela não reclamava. Miguel falava pouco, mas pensava muito. “Se fugirmos”, disse ele, “finalmente, ele vence para sempre.”
Lúcia olhou para ele de soslaio. A luz do painel projetava sombras em seu rosto. A barba por fazer, o olhar profundo, a mesma boca que antes comandava reuniões com milionários. Agora ele falava como um homem sem nada, mas com tudo a perder. “E o que você quer?”, perguntou ela. Miguel respirou fundo. Provas, provas que um juiz possa engolir sem engasgar.
Ele inclinou o corpo para a frente, como se a van pudesse ouvir. “No meu escritório, atrás da mesa, há um painel de madeira, um cofre e, conectado a ele, um servidor. Ele grava tudo: áudio, vídeo, cada tecla digitada, cada acesso, cada transferência.” Lucia franziu a testa. “Você tem isso e nunca usou?” “Nunca precisei”, respondeu Miguel.
E a frase veio acompanhada de vergonha. Eu pensava que meus amigos eram amigos. O silêncio era pesado. Lúcia olhou pela janela. A chuva corria como lágrimas no vidro. “Vou entrar”, disse ela. Miguel virou o rosto rápido demais. “Lúcia, eu conheço aquela casa.” Ela o interrompeu sem levantar a voz. “Eu sei qual degrau range.”
Eu sei onde a câmera não pega. Sei qual janela do porão não fecha direito, porque eu sempre empurrava e ela sempre voltava. Ela apertou a alça da mochila vazia, como se já sentisse o peso do que eu ainda ia carregar. Você coloca o cérebro, eu coloco o corpo. Miguel fechou os olhos por um segundo.
Quando ele abriu, havia algo duro lá dentro. Então vamos fazer direito. Horas depois, estacionaram atrás da mansão. O luxo parecia falso sob a tempestade. As árvores balançavam, o portão brilhava molhado e a casa, a casa parecia um cadáver bem vestido. Miguel ficou na van com um rádio scanner barato, grudado no telefone.
O coração batia forte demais. Ele odiava ficar parado. Odiava não poder ir junto, odiava ser dependente. Lúcia vestia preto, o cabelo preso, luvas, uma pequena lanterna. Antes de sair, olhou para Miguel. Traga-me de volta para o meu bebê, disse ele. E a frase não era um pedido, era uma ordem. Miguel sentiu. Ela desapareceu na escuridão.
A alta cerca ali era parcialmente coberta por muros antigos. Lúcia os escalou, escorregando na chuva, os dedos buscando firmeza. Caiu uma vez, ralou o joelho, mastigou a dor e subiu de novo. Entrou pelo porão, pela janelinha onde sempre emperrava. O cheiro de detergente caro invadiu seu nariz e, por um instante, o passado voltou inteiro.
Ela dobrava camisas, limpava vidros, reprimia a própria vida para se encaixar no uniforme. Agora, cruzava a mesma casa como uma sombra. Ao chegar ao escritório, encontrou uma chave escondida no batente da porta, um antigo hábito de Miguel, que sem querer salvara os dois. O painel abriu com um clique. O servidor estava lá, luzes verdes piscando como um coração artificial.
Ele desparafusou cuidadosamente, com as mãos trêmulas. Colocou o bloco pesado na mochila. “Consegui”, sussurrou. “Saia agora”, respondeu Miguel ao telefone. Sua voz soava mais velha. “Vá agora, Lucia.” Então ele viu pelo retrovisor os faróis de três SUVs pretos vindo em sua direção. Lucia. Miguel engoliu em seco.
Ele chegou, o som de portas batendo, risadas masculinas, passos ecoando no saguão vazio. “Vá para o escritório”, Miguel sussurrou em pânico controlado. “Eles estão indo para o escritório.” Lúcia correu para o canto e se escondeu atrás das pesadas cortinas, colada ao vidro frio. Desligou a lanterna, prendeu a respiração, a porta se abriu, a luz acendeu, ela viu as silhuetas, Otávio e dois homens, o cheiro de charuto e uísque invadiu o ar.
Tudo isso foi culpa daquele idiota do Miguel. Octavio riu. Agora é meu. Lucia pressionou a mochila contra as costelas. Doía, mas ela nem sentiu. Um bipe baixo veio do telefone. Bateria fraca. Otávio parou. Você ouviu isso? Lucia congelou. Otávio caminhou até o painel. “Deixei fechado”, murmurou. Um clique do mecanismo soou.
O servidor desapareceu. Ele gritou. O caos se instaurou. Tranque tudo. Tem alguém aqui. Lucia falou ao microfone quase sem voz. Miguel, eles vão me encontrar. Sua resposta veio estranhamente calma. Não vão? Como assim? Em 5 segundos, tape os ouvidos. Lucia não teve tempo de perguntar. Miguel chamou a van, apontou para o gerador externo e acelerou.
O impacto foi como um trovão dentro da terra, metal contra concreto, um estrondo que se transformou em uma explosão abafada. As luzes da casa se apagaram. Escuridão total, gritos. Um tiro ecoou no ar. Uma bala atingiu a madeira a centímetros do rosto de Lucia. Estilhaços cortando a pele da bochecha. Ela correu.
Ele correu como se estivesse correndo por três vidas. Desceu a escadaria principal em meio ao caos, enquanto os seguranças corriam para fora, atraídos pelo fogo do gerador. Lúcia saiu pela porta principal e viu a van de Miguel destruída, com fumaça subindo. Miguel estava lá dentro, fingindo estar com sangue na sobrancelha. “Você conseguiu?”, gaguejou. Lúcia ergueu a mochila.
Eu consegui. Eles não tinham mais um veículo, mas os SUVs do Otávio estavam lá com o motor ligado. Os seguranças os viram. Ei, peguem eles! Lúcia fez o impossível. Ela puxou Miguel com força, arrastou suas pernas inúteis como se fossem um peso morto, o corpo dele batendo nos degraus, e jogou Miguel dentro do SUV, mais perto, como se estivesse salvando alguém de um incêndio.
O motorista se aproximou dela. Lúcia se virou bruscamente e atropelou o homem com a mochila. O garçom lá dentro, duro como pedra. O som foi úmido, um estalo de nariz quebrando. Ela entrou pela porta da frente do banco, trancou as portas e pisou fundo no acelerador. O SUV rugiu. A chuva bateu no para-brisa e o mundo se tornou uma linha. O portão de ferro se fechou.
“Acelera!”, gritou Miguel do banco de trás. “Seguro”, respondeu Lúcia sem olhar e acelerou. O SUV passou pelo portão como se fosse papel. Ferro voando, faíscas, o som apocalíptico do metal cedendo. Quando finalmente chegaram à estrada, a mansão ficou para trás, escura, fumegando, com sirenes inúteis tocando sem parar.
Lúcia tremia ao volante. O braço sangrava ainda mais. Miguel respirou fundo, olhou para a mochila no banco do passageiro, como se olhasse para um tesouro, e riu. Uma risada curta, quase assustadora. “Estamos vivos”, disse ele. E a voz dele tinha algo que ela nunca ouvira antes. E agora ele está morto.
Lucia não respondeu. Apenas apertou mais o volante, sentindo o peso do garçom ao lado, como se fosse um bebê de aço. E no reflexo escuro do vidro, por um instante, ela viu o que aquela noite havia feito com eles. Eles não eram mais patrão e empregada. Eram duas pessoas caminhando juntas em direção à mesma fogueira.





